Luto de sofá.
Depois de dois anos morando fora do Brasil, longe da família e dos amigos queridos, perdendo aniversários, casamentos, natais, nascimentos e momentos importantes em geral, chegou para mim o momento que eu mais temia: a perda estando longe.
Perdi um querido amigo. De repente, em um acidente de trânsito. Sem despedidas, sem preparação para o luto. Uma pessoa jovem, alegre, cheia de planos… Enfim, para ser sincera, nunca lidei muito bem com a morte. Particularmente, tive a boa sorte de ter a minha primeira perda aos meus 18 anos, também de um amigo da mesma idade. Perdi minhas duas bisavós há pouco tempo, uma aos 104 e a outra aos 97 anos. Não tive muitas vivências, então para mim o susto da morte é difícil.
Mas agora foi diferente de tudo: tive que lidar com a morte estando longe. Quando recebi a notícia, estava a caminho do trabalho. Não entendi bem o que tinha acontecido, apesar da clareza das palavras do meu amigo que me informou. Eu trabalho com crianças, então, ao chegar na escola, precisei vestir a máscara do personagem. A “teacher Ju” tomou as rédeas e tocou o dia em frente como se nada tivesse acontecido. Ao chegar em casa, quando a Juliana voltou a tomar a frente, ainda demorei para sentir. Fiquei triste, é lógico, mas custei um pouco a desabar.
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A princípio, o que passou pela minha cabeça foi: preciso ligar para x, y e z. Preciso falar com os pais dele. Preciso mandar dinheiro para o Brasil. Preciso perguntar sobre o velório. Preciso, preciso, preciso… A aflição de estar longe me afetou muito antes da dor da morte. A sensação era de que eu precisava estar lá no Brasil, resolvendo as coisas, abraçando pessoas, consolando outros amigos, sentindo a dor em conjunto. Aliado a isso, veio a culpa – e com ela as inúmeras questões existenciais.
Será que estou perdendo muitas coisas aqui de longe? Será que estou deixando de aproveitar o tempo com a minha família, dada a fragilidade da vida? Será que se eu estivesse no Brasil poderia ajudar de alguma forma? Será que eu faria diferente?
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Em profunda crise, causada pela tristeza da perda e sensação de impotência, ao conversar com meu pai, ouvi: “Você está se sentindo culpada por não estar em um velório que você nem queria estar?”. Eu particularmente gosto da ideia de redimensionar o problema. Realmente, sobre isso a culpa melhorou. Aliás, preciso entender que quando eu não estou por perto, as coisas serão resolvidas mesmo sem a minha presença. Sinceramente, tendo a acreditar que talvez as coisas seriam resolvidas de outra forma, mas não é saudável para ninguém ficar pensando nas hipóteses. Lição aprendida.
Depois de entender essas questões, de lidar com a culpa, de ter que repensar quais são os meus objetivos morando do outro lado do planeta, de entrar em contato com as pessoas com quem me importo para saber como estavam, o que eu podia fazer de longe… depois disso tudo resolvido e mais ou menos equilibrado dentro de mim, veio a tristeza da perda.
Ao conversar com uma amiga que mora na Itália e recentemente perdeu seu avô, ela usou um termo que traduziu bastante esse turbilhão de sentimentos que a gente passa com a perda a distância: “luto de sofá”. A gente demora um pouco a sentir. Primeiro, quer falar com as pessoas para ter certeza do que aconteceu, quer tentar resolver de longe, mesmo sabendo que não há nada que a gente possa fazer a distância. E aí vem a culpa, a impotência, as dúvidas. Só depois disso, vem o luto. E este luto, mesmo que você não esteja exatamente desacompanhado (como, no meu caso, tenho o meu marido que é também um grande amigo e muito companheiro), você se sente sozinho. A solidão acompanha, e vem tão dolorida quanto o luto.
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A vontade de estar no Brasil foi grande, mesmo não gostando de ir a velórios (quem é que gosta?) e certamente querendo evitar participar de um evento tão sofrido. Mas vem a falta de sentir o luto em conjunto. A falta daquele abraço empático, dizendo nas entrelinhas: “Sei o que você está sentindo. Nosso amigo foi uma grande pessoa e vai deixar muitas saudades”. E não existe muito uma solução diferente de sentar no sofá e deixar o luto passar. Se permitir chorar e sentir a dor do luto, para depois – também sozinha – levantar e seguir a vida.
Felizmente, apesar das saudades, o meu luto já acabou. Consegui me reerguer, mesmo sem a despedida e fechar esse ciclo. Levantei-me do sofá. Não serei hipócrita dizendo que a solidão foi embora, ou que a sensação de que estou perdendo tempo longe da minha família foi passageira. Essas aparecem de vez em quando, especialmente quando as saudades apertam. Talvez seja uma parte de mim que ainda está sentada no sofá, precisando se levantar. Talvez sejam as mudanças de perspectiva causadas por uma morte. Talvez sejam só uma sensação.
O tempo é o melhor remédio.
Em tempo: gratidão por ter tido um amigo como foi o Matheus. Uma das pessoas mais amáveis e tranquilas que já conheci, de olhar sensível, fotografias lindas e ótimas piadas. E também sou muito grata por ter uma família tão maravilhosa que, mesmo longe, se faz presente e me ajuda a “levantar do sofá”.