A Malásia é considerada um dos países com o maior número de muçulmanos no mundo. Sempre que digo isso me perguntam: Mas com você vive lá? Não é perigoso?
Apesar de ter um número de muçulmanos praticantes muito alto, as leis da Malásia permitem que outras religiões e crenças sejam praticadas em paz e harmonia e dizem que o Islã é tão somente a religião principal do país, não uma obrigatoriedade. Esse é o discurso dos governantes. Com isso as mulheres não muçulmanas podem, sim, andar vestidas normalmente na rua no estilo ocidental, sem burca ou véu, com roupas comuns. As muçulmanas usam em sua maioria somente o véu e a abaia, mas varia de acordo com cada família. A burca por aqui não é obrigatória.
Esta “democracia” faz com que Kuala Lumpur seja realmente vista como uma cidade moderna e de mente aberta em relação à cultura muçulmana e suas restrições, mas na prática e no dia a dia não é essa modernidade toda. Devido a presença de muitos estrangeiros, a cidade teve que se adaptar à cultura não muçulmana e também a outras religiões, mas a mente de grande parte da população ainda tem muita resistência a novas ideias e segue fiel às raízes da cultura muçulmana.
A ideia de que a mulher precisa ser o centro da família e desempenhar o papel de mãe e esposa ainda está muito enraizada. No meu dia a dia consigo perceber bem isso. Ser casada, por aqui, na minha opinião e pelas minhas experiências, é sinônimo de ser “boa pessoa”. Todo lugar que vou como médicos, ou em algum outro prestador de serviço, a pergunta é sempre a mesma: “Qual o nome do seu marido?” Ou “qual a profissão do seu marido?” Antes mesmo de perguntar sobre mim, querem saber se tenho marido ou já pressupõem que tenho um. Em alguns lugares a que fui já pediram até para meu marido assinar como meu responsável.
Aqui na capital do país vejo muitas mulheres muçulmanas trabalhando em empresas, bancos e funções de atendimento, mas o que consigo perceber é que este avanço é só uma questão de obrigação, ou seja, a sociedade teve que ceder a novas leis e determinações, e não foi uma questão de conscientização de que realmente não há problema algum em mulheres desempenharem as mesmas funções que os homens e/ou terem atividades que não só a de dona de casa, mãe e esposa principalmente.
De uns anos para cá muito já foi feito em relação aos diretos das mulheres pelo governo federal se comparando a outras nações islâmicas. Um dos avanços foi a criação da lei contra violência domestica de 1994 (Domestic Violence Act), que tem como fim proteger a pessoa (mulher, criança ou homem) que sofreu algum tipo de violência. Porém este ato, além de não proteger mulheres solteiras (por exemplo, mulheres que tenham sido agredidas por um namorado não usufruem da lei), sofre com muitas falhas e atrasos em sua implementação, regulamentação e até mesmo o total descumprimento, segundo o Women’s Aid Organization. A linha tênue entre os direitos das mulheres, seu papel na sociedade e o papel que o Islã representa em suas vidas acaba por ser um obstáculo para o avanço na luta contra a discriminação e igualdade dos direitos das mulheres no país.
Mesmo com o avanço das leis a cultura da religião ainda prevalece na sociedade, o que faz com que muitas mulheres prefiram aceitar a sociedade como está a se adequar a uma nova realidade e ultrapassar muitos obstáculos no seu dia a dia. Apesar da vida de nós estrangeiras ser mais fácil por não sermos julgadas em alguns aspectos, por outro lado temos sempre que agir com uma certa parcimônia e saber lidar com certas esquisitices, como por exemplo, perguntarem para seu marido quantas esposas ele tem, na sua frente… Só rindo mesmo e levando na esportiva.
O pais é regido pelas Leis Civil e a Lei Shariah, a lei islâmica. A Shariah rege os muçulmanos malaios somente nos assuntos de família, casamentos, divórcios, guarda de filhos, e também assuntos sobre violência contra a mulher. Para assuntos criminais e civis, a lei federal ou corte civil é que prevalece. Esta dupla ação de leis acaba por prejudicar o avanço dos direitos das mulheres pois a Lei Shariah prevalece nestes casos. Ou seja, sendo muçulmana, as leis e direitos criadas pelo governo podem não ser aplicadas. Sendo assim a presença das ONGs ainda desempenha papel importante na vida das mulheres na Malásia, pois são elas que as representam em conferências na ONU e estão diretamente lidando com as mulheres que sofreram ou sofrem abusos. O governo nem sempre está presente paras estas mulheres e são as ONGs que fazem o trabalho de informar os direitos e as “armas” que elas têm contra a violência, direcionando e orientando.
Estas ONGs são formadas por mulheres que lutam diretamente contra a ideia que seguir o Islã significa se tornar uma mulher submissa e não ter os mesmos direitos que os homens na vida civil. A principal ONG chama-se SIS (Sisters in Islam). Quem quiser saber mais sobre o trabalho que desempenham pode clicar aqui.
Em contrapartida ainda existem no país ONGs que são a favor da submissão da mulher ao sexo oposto, como a ONG Obedient Wives Club (Clube das Mulheres Obedientes). Um dos discursos mais polêmicos desta ONG está ligado ao fato de a esposa ser a responsável pela traição do marido ou alguma outra atitude negativa do marido. Estas são consideradas pelas ativistas um retrocesso a todo o esforço e avanços que já foram obtidos no país em relação aos direitos das mulheres, visto que ainda há forte influência destas ONGs conservadoras sobre as mulheres muçulmanas.
No mercado de trabalho, a luta das mulheres é para que consigam posições com maior poder de decisão e até mesmo posições na política.
Segundo a Women’s Aid Organization, as mulheres representam 36% da força de trabalho da Malásia porém metade (18%) são mulheres que trabalham sem pagamento ou consideradas do lar. Muitas são obrigadas as deixar o trabalho após se casarem ou se optarem por continuar trabalhando a dar seu salário para o marido. Apesar do número de mulheres no mercado de trabalho ter aumentado, este aumento foi em cargos de subemprego e/ou posições de nível médio.
Em relação à violência contra a mulher, ainda há muito que evoluir. Mesmo com a lei de proteção contra a violência doméstica criada em 1994 , os casos de violência continuam a ocorrer e muitas vezes, sem punição, pois a criação da lei por si só sem educar e conscientizar a sociedade sobre os direitos do sexo oposto não adianta. Isso é o problema que mais percebo. Vejo uma cidade crescendo e tentando se modernizar em vários aspectos, mas que possui uma população ainda muito engessada e indisposta a mudar , incluindo as próprias mulheres, por motivos diversos.
22 Comments
Querida acho que talvez vc devesse se dedicar ao jornalismo,experimente enviar esse texto para O Globo ,já que está se aproximando o dia internacional da mulher,ele está mto bem redigido e é muito consistente,so acrescentaria alguns exemplos práticos.
Um beijo
Cleusa
Oi Cleusa, que bom que gostou. Próximo tentarei exemplificar mais.
beijos
“perguntarem para seu marido quantas esposas ele tem, na sua frente… Só rindo mesmo e levando na esportiva” – imagino vc ouvindo isso q quase indo morder o pescoço da pessoa huahuauhahuahuahuahuauhuhahuahuahuahuhauuhauhauha parabens pelo texto! compartilhei no meu fb.
hahah Pois eh. E ja foi mais de uma vez. Eu fico rindo e olhando pro Antonio. hahahaha
Realmente, um texto muito elucidativo!! Sou amiga do Vitor, e tenho acompanhado seus relatos sempre que ele posta algo a respeito. Parabéns!!! Bjs
Obrigada! Que bom que gostou. beijoss
Adorei o texto. A ideia da Cleusa realmente é otima. Mas realmente ter marido como “responsavel” ninguem merece…. beijos e saudades
Beleza de texto! Parabens
Excelente texto! Também concordo que você deveria enviar esse texto para algum jornal! Compartilhar a sua experiência de viver em um pais mulçumano seria ótimo! Parabéns!
Adorei o texto, mto elucidativo com relação à real situação da mulher na Malásia. Está excelente!
Obrigada amiga!!
Parabéns Fernanda! Adorei o texto!
Obrigada!!!
Parabéns pelo texto, Fernanda. Deu para ver que o problema da Malásia é o mesmo da Turquia (país onde moro). Há muitíssimo a se fazer, mas o avanço é complicado. Beijos!
Obrigada Aline. Pois é, o avanço fica muito prejudicado por conta das diferenças culturais e religiosas.
Muito bom texto. Uma curiosidade: as mulheres que lutam por mais direitos e as ONGS mais progressistas sofrem represálias constatemente? Houve algum problema durante a marcha pelos direitos que você mencionou? Beijos
Pingback: Portugal – Maria pediu ajuda…
Excelente texto! Parabéns!
Exatamente como aqui na Indonésia. Há muito a se fazer por essas mulheres ainda.
Obrigada!! Imagino que ai na Indonesia sea parecido mesmo.
beijos
Parabens.
Com tudo o dereito que vocês têm no Brasil e a baixa taxa de violência contra as mulheres lá, convido a todas vocês que sugiram passos necesários para melhorar a situação das mulheres malaias.
http://www.compromissoeatitude.org.br/alguns-numeros-sobre-a-violencia-contra-as-mulheres-no-brasil/
Adorei o texto, estou numa escala longa por aqui e não sabia que a religião predominante era a muçulmana, até chegar e ver praticamente 80% das mulheres cobertas.
me ajudou muito a conhecer sobre os direitos das mulheres na Malásia, vou participar de uma simulação da ONU e representar a delegação da Malásia