Manifestações diárias em Genebra – você tem fome de quê?
Uma das coisas que me chamou muito a atenção em Genebra é a quantidade de manifestações que acontece por aqui. Diariamente, inúmeras organizações de todo o mundo se utilizam da Praça das Nações, onde está sediada a ONU-Genebra.
Todos os dias eu pego um ônibus que para nessa praça, onde eu pego o trem para buscar minha filha na escola. Não tem um único dia, de segunda a segunda, que não se encontre uma (às vezes duas ou três), manifestação acontecendo ali.
Algumas pedem pelo fim de ditaduras, outras denunciam violação de Direitos Humanos (já presenciei uma manifestação que espalhou pela praça fotos de pessoas torturadas e de corpos de pessoas executadas, muito forte) ou pela proteção ambiental. São passeatas, protestos ou manifestações artísticas.
Espaço dividido
Como a praça é grande, muitas vezes cada organização utiliza um espaço da praça. Quando participei da organização do evento sobre a Marielle entendi melhor como funciona.
O chão da praça é formado por diversos quadrados que se somam, esses quadrados vão somando quadriláteros maiores. Para realizar a manifestação é necessário fazer uma solicitação à prefeitura, que agenda previamente cada quadradinho usado para a manifestação.
Não há dificuldade em agendar, uma pequena burocracia com detalhes sobre o evento, tempo de duração e a liberação sai. O maior problema é a agenda, já que o espaço é disputadíssimo.
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Antes de morar em Genebra, eu acreditava sinceramente que essas manifestações tinham algum impacto político, já que eram realizadas em frente à ONU. Eu não tinha noção de que são inúmeras manifestações por dia, e que ninguém das Nações Unidas está sequer olhando para o que acontece na praça.
O efeito é praticamente simbólico, com pouco ou nenhum impacto na prática. Tem gente que pensa diferente, que acha que os atos pressionam os estados membros da ONU e impactam diretamente nos efeitos relacionados aos temas ali levantados.
Seja como for, esses atos são muito importantes seja do ponto de vista simbólico ou político. Acho importante até para que os indivíduos, para que as pessoas que estão longe de casa não percam de vista seus sonhos e suas lutas, Mesmo porque, muitas vezes, esse é o real motivo para que muitos dos manifestantes tenha se tornado um imigrante ou refugiado, e também porque não é por estar longe de casa que não queiramos e devamos estar conectados com nossas feridas.
Seria como achar que por sairmos das casas dos pais, não devamos mais ter vínculos ou nos preocupar com eles. Ao contrário, muitas vezes a distância até aumenta o nosso senso de pertinência e pertencimento.
Manifestar-se sobre algo é uma forma de demarcar uma determinada posição, de não perder o fio da meada da nossa história e também uma forma de dizer: eu continuo me importando com isso!
Olhando de volta para casa
Como eu disse, todas as vezes que passo por essa praça (normalmente duas vezes por dia) eu percebo o quanto ainda temos de estrada a percorrer. Percebo também como, apesar de todas as mazelas, injustiça social e violência que vivemos no Brasil, ainda há países com necessidades muito mais prementes e básicas do que nós, e que talvez nos falte um pouco mais de fibra e de boa vontade para acertar nossos ponteiros.
Há coisas em minha nação que muito me doem. O racismo, a violência contra a mulher e a LGBTfobia são algumas das coisas que frequentemente me fazem chorar. Isso sem falar na violência generalizada dos grandes centros urbanos.
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Fiquei chocada em ver quantas mulheres brasileiras que vieram a Genebra para recomeçar suas vidas, acometidas de síndrome do pânico. No entanto, mesmo com todo os nossos problemas, eu fico refletindo que apesar de tudo, nós somos abonados com algumas coisas inegociáveis.
Temos liberdade de expressão, liberdade de culto, organismos de direitos humanos atentos e ativos, Sistema Único de Saúde, que tem lá seus vários defeitos, mas que ainda é uma grande benção que nossa nação possui (todas as vacinas, transplantes, cobertura universal de tratamento para o HIV, tudo custeado pelo Estado), liberdade para as meninas estudarem, programas de mitigação das injustiças sociais e reparação de danos sociais pepretados ao longo de anos de escravidão, colonialismo e ditaduras.
Temos lindas iniciativas em diversas áreas da sociedade como incentivo à formação universitária e inclusão de minorias na academia e nos serviços públicos.
Quando paro para observar as manifestações na praça das nações ( e criei o hábito de fazer isso quase todos os dias), procuro exercitar a minha empatia para com aqueles povos. Somos todos humanos, então de algum modo a dor deles deveria doer em mim também.
Estar inconformado com a dor, a tortura, a supressão da liberdade, da dignidade e do direito à vida, seja lá em que rincão desse mundo. O exercício de imaginar como é a vida de algumas pessoas ao redor do nosso planeta, frequentemente me faz chorar.
Há lutas que sequer imaginamos, causas sobre as quais jamais ouvimos falar e países e povoados que nem mesmo sabemos que existem.
Enquanto em alguns deles, falta o pão. Em outros a liberdade.
De tanto observar esses povos e suas marchas, concluí que o problema somos nós, a raça evoluída e racional à frente de todas as outras, que oprime, mata e tortura.
Há países em que muçulmanos matam cristãos, em outros, budistas matam muçulmanos, ou cristãos que se matam entre si.
Para além dos conflitos religiosos há as lutas políticas, os totalitarismos, a liberdade cerceada, à perseguição à minorias e a violência contra os jornalistas. Há, acredite, limpezas étnicas em curso, a fim de extinguir determinadas raças e etnias minoritárias!
Todo dia um grito clama por paz, justiça e esperança.
São fomes de muita natureza. E você? Tem fome de que?