Mudei de país. E agora, quem sou eu?
“Mudamos de país, mas continuamos a mesma pessoa”. Mudamos de país, mas ficam aqui dentro do peito: crenças, valores, amores. Sinto desapontar, mas tudo isso se dilui com o tempo: a pessoa que era quando chegou, as certezas e incertezas que tinha, os laços mais fortes que ficaram para trás. Mas e agora, quem sou eu? A vida seguiu. O tempo passou, não pertenço nem lá nem cá. Quero o aqui e o acolá. E agora quem sou eu?
No começo tudo é novo, belo, desafiador. Mas quando a saudade deixa de cutucar e passa a doer, começa-se a ver o mundo ao redor com pesar, sob as lentes frias da realidade. Questiona-se as escolhas que fez com medo que as consequências sejam difíceis de se suportar. Mas nasce ali um novo ser que já aprendeu a existir no novo lugar. Não quero mais voltar.
Não existe nada mais belo do que aproveitar o caminho que escolhemos, a cada minuto, a cada passo. A jornada é incerta mesmo quando nos enchemos de certezas, as curvas e as pedras nos fortalecem, mas só é possível perceber isso depois de os passar. Não é preciso chegar no topo para aprender, basta passar e olhar para trás.
Leia também: tudo que você precisa saber para morar em Portugal
O renascimento da personalidade acontece a cada dia, seja mudando de país ou não. Somos seres inevitavelmente mutáveis e essa virtude humana que nos confere tamanha inquietude diante da vida, nos transforma em tudo o que somos, com a construção de cada momento exatamente como foi, como se cada dia fosse um tijolo que moldasse nossa personalidade. Possuindo a experiência e maturidade como cimento que junta tudo isso e deixa nossa estrutura mais forte. Você só é o que é devido a cada experiência que viveu. Como diz a letra da música da Clarice Falcão: “Se não fossem as minhas malas cheias de memórias, ou aquela história que faz mais de um ano, não seria eu.”
Quando mudamos de país, trocamos a casa de tijolos por uma casa de palha. Frágil e cheia de incertezas. Fácil de se desestabilizar com o vento, fácil de cair com o balançar da alma, que enfrenta o que é novo todos os dias, sem poder cessar. Tenho que ser forte. Tenho que ter sucesso. Tenho de estar feliz. E assim, somos pressionados por essas forças invisíveis que batem desconfortavelmente em nossas costas. Sem poder cair, caminhar é preciso. Mas pelo caminho me pergunto: “E agora, quem sou eu?”
As referências mudam, e isso torna tudo mais complexo para encontrar-se no novo lugar. Precisamos de referências, rotinas, estabilidade, convívio, ou como diriam os Titãs: “comida, diversão e arte”. Em busca de preenchimento dessas lacunas internas, nos moldamos aos poucos como um novo ser. Um novo tijolo na personalidade sendo acrescentado a cada dia, a cada experiência vivida.
Leia também: como as mulheres imigrantes lidam com a depressão inicial
E quando buscamos conforto visitando o lugar de onde viemos, mais uma inquietude: já não mais a lá pertenço. Os lugares que tanto senti saudades não estão mais lá, as pessoas não são as mesmas, os cheiros, os sabores, as cores, não são as mesmas que sentia antes. A vida por lá seguiu e sente-se saudades do que já não existe mais, sente-se saudades do passado. Mudamos de país mas, não continuamos a mesma pessoa. A vida continuou sem você. Sigo achando também que não é preciso mudar de país para se sentir assim. A vida, na sua preciosidade de contornos, nos coloca nessas situações. Sinto saudades dos tempos de faculdade, por exemplo, daquele convívio despretensioso e intenso que só a juventude proporciona. Aqueles meus colegas de faculdade, hoje, não existem mais. Não adianta tentar recriar no presente o que só existe no passado. Passou. Foi bom. Inesquecível. A vida é assim. Ela sempre nos dá o melhor e só percebemos que era tão bom, quando já não temos mais.
Independente das escolhas que façamos, o caminho não percorrido sempre nos parece mais interessante. Dos amigos que se foram aos amores que não foram, tudo isso são escolhas as quais as consequências nunca saberemos. Aos que optaram por deixar o Brasil, fica no peito a certeza que estão fazendo o melhor pelo seu futuro e de seus filhos. E agarrar-se a esta certeza é a única opção. Se eu pudesse, com base na minha subjetiva experiência, daria um conselho: preocupe-se menos em ser e mais em sentir. Você vai se adaptar com o tempo. Comparações não levam a nada, se puder, ensine seu cérebro a não se comparar com os outros e a não comparar o país onde você mora com o país onde mora seu coração. Acho válido tentar bloquear essas preocupações com o intuito de sentir o caminho percorrido ao invés de tentar provar o tempo todo o que todos querem que você seja.
Mas e agora quem sou eu?
Eu, meus amigos, sou nada mais nada menos que um ser em construção. Recolhendo tijolos pelo caminho e alinhando minhas estruturas. Vivendo cada experiência para que minha mala cheia de memórias seja leve quando eu não tiver mais nada, a não ser a opção de carregá-la comigo.
14 Comments
Excelente ! Estou em minha segunda expatriação também, e eternamente em construção. Parabéns pelo texto e por se permitir reconstruir sempre que necessário
Muito bom o texto! Talvez o truque seja não nos apegarmos à quem somos e estarmos sempre abertos a mudar né?
Muito bom o texto . Exatamente como nos sentimos . Já voltei ao Brasil duas vezes para”sempre” estou de volta à Inglaterra há quase 3 anos . Às vezes é difícil
assumir que não somos mais as mesmas pessoas e que os que ficaram lá também não são , portanto há que aceitarmos o novo ser que nos tornamos e ir em frente .
Valeu ! Obrigada por colocar em palavras nossos sentimentos
Perfeito!! Adorei o texto e me identifiquei bastante. Você consegue escrever com o coração. Parabéns!
Adorei seu texto, Analu.
Deixei o Brasil, o Rio que eu amo em 1996 e, identifiquei-me com muitas de suas colocações. Especialmente quando me dei conta de que, apesar de tudo, já não quero voltar.
Otimo texto.
Maravilhoso texto… Parabéns.
Seu texto foi excelente e como dizem por aqui “veio a calhar” exatamente com o que estou vivendo agora. É um mistura de sentimentos e a necessidade de encontrar respostas. Muito obrigada por seu texto! Ao ler suas palavras percebo que o que penso e sinto não é assim tão “anormal”. Um excelente novo ano para você e sua família.
Muito bom o texto. Realmente essas idas e vindas desconecta o “eu ” sem tirar as emoções das vivências. No entanto, o tempo e o amadurecer nos permite esse estado de mudanca. Mesmo sem estar em outro país, sem estar mudando de lugares, o nosso eu passa por esse tipo de transformação e interrogaçao. E viva as mudanças!
Analu, às vezes é necessário entrar nas entranhas da alma e expor aquilo que sempre queremos dizer, parabéns você conseguiu. Linda reflexão, vale a pena ler e reler.
”Quando mudamos de país, trocamos a casa de tijolos por uma casa de palha. Frágil e cheia de incertezas. Fácil de se desestabilizar com o vento, fácil de cair com o balançar da alma, que enfrenta o que é novo todos os dias, sem poder cessar. Tenho que ser forte. Tenho que ter sucesso. Tenho de estar feliz.”
Creio que nos transformamos em nossa casa, quando saímos pra fora do nosso país, aprendemos a olhar mais para dentro… Adorei o texto. 😉
Lindo texto e muito condizente com a minha realidade apos dois anos e meio morando fora do Brasil.
Obrigada pelas suas belissimas e esclarecedoras palavras.
A proposito, o desenho da moca ee perfeito com o contexto. Achei muito identificador com o meu momento atual.
Excelente Texto retratando muito o que sentimos. Mora no exterior desde 1997. Realmente tudo no nosso país de origem muda enquanto a nossa memória está no passado ( tanto enquanto as nossa experiências) . Nada parou por la; nossos amigos e família mudaram, assim como nos. Não me sinto daqui ou de lá e as vezes isso eh verdade. Porém temos que aceitar e entender que a nossa vida é construída de experiências, seja onde você estiver. Crescemos muito a cada dia e com cada desafio você cresceu muito durante essa jornada.
Obrigada pelo comentário, Marco 🙂 Com certeza crescemos com a jornada, como você disse. E espero continuarmos crescendo. Um abraço e obrigada, Ana