Quando aquela mulher entrou pela porta da enfermaria, gritando: Há um bebe muito mal! Eu pensei: – Não! Isso, não está acontecendo, nosso “turno” acabou e tudo deu certo, não é possível que algo aconteça justamente na hora da saída.
A manhã tinha sido cansativa. Fazer inventário das doações, limpar e passar remédio nas crianças e driblar a ansiedade das mães ávidas por presentinhos e doações extras.
O dia a dia no orfanato não é simples. Desde que começamos a trabalhar lá, há cerca de quatro meses, quatro crianças já vieram a óbito (e ninguém se importa).
É uma sensação permanente de secar gelo.
O orfanato conta com cerca de 100 crianças, desde bebês até adolescentes, além dos cerca de 30 idosos e mães solteiras que também vivem ali. É quase errado chamar aquilo de orfanato. O lugar é mesmo um abrigo para toda sorte de gente abandonada.
Mães solteiras, crianças com necessidades especiais, deficientes físicos, idosos sem família, cegos, portadores de HIV e tudo o mais que a sociedade vietnamita considere como uma pária da sociedade, você encontrará no bodeh.
De repente meu amigo entra porta adentro carregando um corpo desacordado.
Observo com atenção e percebo que o bebê está roxo e completamente mole. Como uma boneca de pano (daquelas velhas, bem surradas). Os olhos estão super cerrados e não consigo ver o movimento abdominal da respiração. A cuidadora grita e se joga no chão! Chora, bate com a cabeça na parede! Bate com as mãos no próprio rosto.
Eu não consegui identificar se ela estava desesperada pela criança, pela possibilidade de perder sua vaga como cuidadora, ou as duas coisas. O fato é que a atitude dela dizia tudo: A situação era gravíssima.
Meu amigo Natan, um brasileiro voluntário no Vietnam e sua jovem esposa estavam ali para acolher o bebê. Natan tomou-o e uma das mãos (que bebê pequeno, meu Deus! Cabia na palma de uma mão!) e seus bracinhos penderam para baixo com pêndulos.
Eu pensei: E agora? Trouxeram o bebê para morrer em nossas mãos.
O plano era muito claro, trazer um bebê mal cuidado à beira da morte para morrer na mão dos gringos, a fim de culpá-los e livrar-se assim da culpa que lhes seria imputada (pode parecer um tanto paranoico, mas culpar estrangeiros por desastres locais é uma prática comum em países asiáticos conhecidos pela corrupção). Para se ter uma ideia, uma das primeiras coisas que aprendemos quando chegamos aqui, foi a não socorrer ninguém na rua. Nem crianças, nem idosos, não ajudar em acidentes, nada! Normalmente você vai levar a responsabilidade e só vai se safar de uma prisão perpetua se ceder às chantagens que surgirão advindas do fato de que você foi encontrado próximo a alguém ferido, doente ou acidentado. Há outras implicações.
Tenho relato de amigos que socorreram vitimas de acidentes e foram apedrejados por pessoas que chegando atrasadas à cena, deduziram que o gringo terá causado o acidente (o lado xenofóbico do Vietnam, que só quem mora conhece). Tudo isso passou pela minha cabeça como música do Titãs: Tudo ao mesmo tempo agora, mas era tarde demais, o bebê já estava em nossas mãos!
Apesar da tensão, meu amigo foi muito assertivo e calmo. Examinou, checou, (em minha opinião tinha cara de ser um sufocamento por refluxo, mas essa era a minha opinião como mãe e não como profissional da saúde). Natan abaixou a língua para olhar a garganta e com esse simples movimento um bocadinho de leite escorreu da gargantinha do bebê.
Definitivamente o bebê estava sufocado, mas há quanto tempo? O sufocamento era por leite ou havia a possibilidade dele ter aspirado algo em cima da cama? Jamais saberíamos. Nós não falamos vietnamita, a mulher não fala inglês.
A tal da doença da morte súbita é certamente uma “freguesa” do bodeh. Nesse orfanato é comum as mães deixarem os bebês deitados de barriga para cima, apoiados por dois travesseiros laterais que os impedem de se virar. Assim elas
encaixam as mamadeiras em suas boquinhas e podem sair para fazer seus “afazeres” enquanto os bebes mamam “sozinhos”.
Desde a primeira vez que vi isso, adverti as pessoas que isso acabaria dando em porcaria… pois é…
O Natan virou o bebê e começou a realizar o procedimento de retirada do leite da garganta. Virou o bebê para baixo e deu tapinhas em suas costas. Os bracinhos jaziam ao longo do corpo e eu não conseguia parar de pensar: Esse bebê está morto!
Milhões de pensamentos passavam pela minha mente numa mesma fração de segundos: Lembrei-me da minha filha e de todas as noites que passei com ela em hospitais por conta de sufocamentos por refluxo.
Obviamente esse bebê estava sufocado há algum tempo e ninguém havia se dado conta. Pensei também que eu nunca tinha visto ninguém morrer e que nunca tinha carregado um corpo inerte em toda a minha vida. O mais próximo disso foi uma vez na Indonésia quando ao visitar um hospital de câncer infantil, uma das crianças começou a convulsionar em frente à comissão da associação de brasileiras que havia ido visitar as crianças a fim de “apadrinhar” algumas delas com o tratamento necessário. (na maioria dos países da Ásia, não ha hospital público e gratuito, apesar de públicos os hospitais são pagos e bem pagos e sem dinheiro mandam “seu filho” de volta pra casa sem medicação ou atendimento mínimo). Morfina para dor? Só se você puder pagar.
Pensei que estávamos a um passo de sermos presos, porque nenhum de nós, em tese, tem autorização para socorrer um bebê à beira da morte (nem mesmo o Natan, que é enfermeiro no Brasil, mas não tem licença profissional para atuar no Vietnam).
Pensava tudo misturado: Caixão, prisão, bebês, colo, minha filha, as crianças com sarna do orfanato inteiro, o grito da cuidadora. A minha fé, a fé deles, as ideologias traídas. Tudo rodava na minha mente como um turbilhão. E finalmente pensei: Estamos em apuros! (mas todos esses pensamentos em torvelinho duravam apenas segundos e lá estávamos nós, orando alto, implorando por um milagre!).
Quando eu percebi que nada funcionava eu capitulei! O lógico havia perdido todo o sentido. A essa altura eu já orava, clamava e implorava, com algum tipo de fé desmesurada nem sabia que eu ainda tinha, mas ao mesmo tempo me sentia ridícula por ainda ter esperança, porque a olhos vistos estava claro que aquele bebê já estava morto.
A Priscila corria para lá e para cá, trazendo e levando instrumentos para o Natan, dava água pra ela enquanto o suor escorria por sua face apesar do severo inverno.
Ele então usou um aspirador e um bocadinho de leite saiu de dentro do bebê. Pouquinho… Então ele fez respiração boca a boca. Abraçou, pediu, por favor, para o bebê não partir. O bebê reagiu um pouco. Muito pouquinho, mas na sequência voltou a desfalecer.
Eu ouvia o Natan dizer, o batimento está parando! Está parando cara! Não pára! Não pára! E depois: Volta! Volta! Volta!
E eu já desprovida de razão, chamava: Filho, filho, filhoo! Por favor! Por favor! Você tem uma vida pela frente!
E quebrava o pau com Deus: Faz alguma coisa! Faz! Você nos trouxe aqui, não? Você cuida de tudo, não? Então! Faz esse coração voltar a bater!
Ele então começou a fazer massagem cardíaca. Um bebê tão pequeno… Eu achava que ele ia quebrar no meio. E me lembrei da cena do filme Cidade dos Anjos, quando a personagem da Meg Ryan massageia um coração fora do corpo com as próprias mãos, chora e implora para o coração voltar a bater. E o coração não volta… Mas eis que não foi assim a nossa historia.
O Natan de repente disse: Ele está voltando! Mais massagem! Mais massagem! Mais oração! Chiliques, choro, gemidos, lágrimas…
Foi um misto de desespero, fé, esperança e um amor desmesurado que não sei nem de onde vem. Naquele momento eu sentia que amava aquele bebê com todo o amor do mundo, e ao ver as lágrimas da Priscila, os olhos do Natan e aquela mulher de joelhos! Eu dei uma de louca e clamei a Deus com uma fé que não conhecia!
Segurei a mãos da Priscila, olhamos para o bebê e pedimos mais uma vez: Por favor…vive! Então o bebê fez um “gaaaaasp”.
O som mais lindo do mundo!
Ele inspirou forte e tossiu um pouco e começou a respirar devagarzinho! O Natan gargalhou e disse: é isso aí! Hoje não é dia de morrer não! Vai morrer no Brás! Aqui não! (só brasileiro pra fazer piada numa hora dessas).
O roxo da pela foi sendo substituído por uma cor de pele rosada, bem irrigada de sangue. O Natan entregou o bebê nos braços da cuidadora e todos nós nos acocoramos em volta dela.
Então ele abriu os olhos e eu tive certeza de que estava diante do milagre da vida. Foi um momento de abraços e choro e colo e palavras de amor.
Isso deve ter durado menos do que uma hora, mas foram momentos raros que contiveram um infinito de lições e experiências.
Abrimos a porta da enfermaria para uma “multidão” ansiosa e assustada, e dissemos: Está vivo!
Não foi o fim do desafio. Foi só o começo! Os maus tratos às crianças no Vietnam são uma constante. Espancamentos, negligência, torturas e abusos. Abandono, abandono, abandono, mas pelo menos no dia de hoje o amor venceu.
Você pode dizer que isso foi obra de um Deus que cura, ou o resultado de mãos hábeis utilizando a técnica de ressuscitação correta. Você pode achar que o bebê só não morreu porque não era seu dia ou quem sabe, que isso foi um lampejo de sorte. Não tenho respostas prontas. Pode ser uma dessas alternativas, ou todas elas ao mesmo tempo. A mim não cabe entender, e muito menos explicar.
Minha trajetória no Vietnam tem me mostrado o melhor e a pior humanidade.
Explicar milagres? Não posso. Milagres são milagres. Há o milagre da vida, do amor, da compaixão e do perdão. Todos esses são milagres cotidianos embora às vezes não nos apercebamos deles.
Quando contei sobre o meu dia, alguns me disseram! Que horror de dia! Ao qual respondi:
Que dia glorioso! Vivi o suficiente para ver um milagre assim! O milagre ao qual Drummond se referia. Do amor semeado no vento, na cachoeira e no eclipse.
O milagre que se justifica nas palavras desse mesmo poeta: “O Amor é primo da morte e da morte vencedor. Por mais que o matem (e matam), a cada instante de amor”.
14 Comments
Fabi, como ja mencionei no email que te enviei assim que recebi teu texto, so tenho a agradecer a pessoas como voce, por fazerem algo tao sublime como voluntariar nesse orfanato, que so pelo teu relato, ja me deixa arrepiada em imaginar o que essas criancas desprotegidas nao passam no dia a dia. Eu nao tenho estrutura emocional para tal, por isso todo o meu respeito pelos que o fazem. Como gostaria de poder mudar o mundo e erradicar todo tipo de sofrimento, ainda mais relacionado a pessoas frageis e criancas, mas, como nao posso, peco a DEUS que continue permitindo que pessoas como voce e o timede voluntarios que tambem ajudam no orfanato muita luz e forca para continuarem esse lindo trabalho de doacao nao so de tempo, mas, principalmente de voces mesmo, de solidariedade e amor para com os pequenos, porque como voce mesmo falou, na hora do desespero o teu peito se inundou de amor por aquele ser tao pequenino e dependente dos cuidados de voces. Todo o meu respeito e admiracao 🙂 xx
Fabi que experiencia incrivel, eu tenho que dizer que jamais imginei na minha vida que em paises asiaticos cian4as poderiam viver assim, é incrivel de pensar aue este tipo de abuso ainda existe e é aceito socialmente! Mas enfim como vc tao bem disse, explicaçao nao temos e nem cabe a nos, mas o que podemos fazer é ajudar como vc esta ajudando! Parabens pelo seu trabalho e imagino o quanto uma experiencia desta pode ser apavoradora e ao mesmo tempo, uma bençao, com um final feliz!!!!! Bjus no coraçao!
Fabi,
Chorei ao ler o seu texto. Me coloquei no lugar de vocês. Que dor, que angustia! Mas o amor curou.
Parabéns a você e a todos que estão com você pelo lindo trabalho. É um crescimento humano único.
Orgulho de você sempre. Te amo!
Lindo trabalho amiga, fiquei muito feliz em ver o seu amor pelo proximo segundo as escrituras de Deus !!!!!Sempre foi assim uma pessoa unica verdadeira com um amor imenso pelo seu semelhante !!!!! O mundo precisa de pessoas assim igual a vc que Deus te abençoe cada vez mais em seu proposito em ajudar as pessoas fazendo sempre o bem e o mais importante com esse amor lindo que Deus te deu !!!!!Sou muito feliz em ser sua amiga sou muito feliz por Deus ter te colocado em meu caminho !!!!Bjos com muitas saudades
Fabi minha linda…..me emocionei lendo….
Vc é semeadora de paz e amor……e q assim perdure por mtoooos anos!
Te amo….e Parabéns sempre…..pelo trabalho lindo que vc faz!
Fabi… eu creio no milagre, eu creio nos propositos de DEUS para nossas vidas. Foi prá vc, prá esta criança e tds que estavam ali e tb vai continuar sendo para nós que lemos seu post e por aí a fora…. Seja o que for que pensem …eu esperava esta atitude de vc. Que bom que Vcs estão aí e podem cutucar esta sociedade que precisa de tantos cuidados. Parabéns…p/ vc e seus amigos ( anjos) . Que Deus continue usando a vida de vcs como instrumento de boas novas. Imagino o susto e tb imagino a alegria . Ah Amiga …que vontade de dar um abraço bem forte e dizer como DEUS está feliz de poder contar com vcs. Uau!!!!! vms comemorar…
Fabi, obrigada por enviar-me seu post falando sobre seu trabalho pelo Mundo.Fico muito feliz por saber que tenho uma amiga querida com uma responsabilidade social deste naipe. Deus quando fez os Anjos espalhou depois os mais capacitados para serem seus intermediários entre Ele e a humanidade.Voce é um deles. Shalom.
Fabi meu amor, me segurei para não chorar lendo o depoimento, a história, quanta emoção minha fada.
Parabéns pela sua linda missão! E do Natan e da Priscila.
beijos imensos, sabor saudade!
Só quem te conhece sabe que os seus dias são todos assim. Dias de atalha, de guerra e de vitória.
que bom que eu conheço!
Vamos adotar o bebezico?
🙂
Nossa, Fabi, impossível não querer chegar ao final do texto, saber como acabou a história. Engraçado que a gente consegue até visualizar a cena, imaginar o Natan, a Priscila, a cuidadora, o bebê desfalecido nas mãos do enfermeiro, o aspecto rudimentar desse hospital. E a gente vai torcendo pra encontrar no final o que todos querem ler: que o bebê sobreviveu. Sensacional! Baita experiência!
A realidade da Ásia é completamente diferente da realidade européia ou brasileira… Bem, pelo menos a realidade do Sudeste Asiático é assim… Não existe a apreciação pela vida, humana ou outra, e o dia-a-dia pode ser bem duro. É impossível passear pelo centro de Manila sem que vários meninos sujos puxem sua blusa e peçam dinheiro.
E eu agradeço todos os dias que temos pessoas como a Fabi que tentam fazer do mundo um lugar mais justo. Como já te disse, minha amiga linda e meu anjo (de verdade! A Fabi me ajudou muito!), sou sua fã!!! <3
Fabi, Parabéns e que Deus continue abençoando vcs que fazem esse trabalho em busca de uma condição melhor de vida para as crianças. Aqui na China, também trabalho numa instituição, qquer dia falo sobre ela, mas o que me levou a buscar esse trabalho foi exatamente por uma questão que vc levantou no seu texto, quando discutia com Deus: Você nos trouxe aqui, não? E esse é o ponto, se viemos parar aqui, é por que algo temos que fazer por esses lados. No meu caso, além disso, me sinto na ‘obrigação’ de fazer algo por um pais que me acolheu e mudou muito (para melhor) a vida de toda minha família. Parabéns pela coragem, pela determinação e por ter o privilégio de assistir o milagre da vida, assim, de uma forma tão humana.
Beijo!
Fabi,
lindo texto, tem razão foi o dia de presenciar um milagre., o milagre de quem não desiste fácil e acredita até o fim. Parabéns pelo seu trabalho.
abraços
Isso vem confirmar o que disse sobre vc estar aí. Isso sim é que é verdadeiramente viver, Fabi.
Deus encaminhou a criança à um lugar onde as pessoas criam Nele e o milagre se manifestou.
Poderiam ter pessoas profissionalmente capacitadas, mas acho que isso não iria fazer a diferença. A “diferença” acontece quando nós não podemos podemos fazer mais nada, só clamar.
Desejo que Deus continue te usando.
Beijos com admiração