Desde que cheguei aqui na Arábia Saudita, há quase dois anos, vi muita coisa mudar. Mudanças sutis no dia a dia que passam despercebidas, mas que quando notadas, nos fazem franzir as sobrancelhas.
Não causam espantos porque são grandes mudanças, mas sim porque são mudanças em um país altamente conservador. E não tem nada de protesto ou exigência popular barulhenta, são mínimas coisinhas que vão tomando forma lentamente.
Muitas vezes causam espanto pela concepção errada ou pré fabricada que a gente tem do país, onde a grande maioria vê as mulheres como submissas e que têm que se cobrir o tempo todo de forma opressora. Porém, nem sempre é bem assim; e é algo que é difícil de entender, e mais complicado ainda de explicar.
Sem querer filosofar muito, vamos aos fatos. O que eu vi mudar nesse país:
Aproveitando que o mês de março traz o dia internacional da mulher, vou começar por elas…
Na cidade que eu moro, temos um nível de liberdade um pouco maior pela quantidade de estrangeiros que residem aqui. Pra quem conhece o país, costumamos dizer que Khobar não é tão aberta quando Jeddah, e nem tão fechada quanto Riyadh (a capital); estamos em um meio termo. Como em qualquer lugar, cidades mais cosmopolitas por concentrarem mais pessoas de culturas diferentes acabam por se abrirem mais culturalmente – no caso Jeddah -, e cidades pequenas de interior costumam ser mais fechadas e enraizadas na cultura local. Riyadh é um pouco mais fechada; não por ser pequena, mas por ser a capital do país, apesar de concentrar um número grande de estrangeiros.
Nessas cidades grandes as estrangeiras não precisam cobrir a cabeça, apesar de terem que usar a abaya (uma peça de roupa bem folgada que cobre os braços e pernas e lembra um roupão). Já nas cidades pequenas, as estrangeiras precisam às vezes até mesmo cobrir o rosto com o niqab (um pedaço de tecido que se coloca sobre o rosto e tem apenas uma janelinha aberta para os olhos).
Dito isso, vou falar das abayas; quando cheguei aqui o que mais via na cidade eram as abayas tradicionais, pretas, sem detalhes. Sabia que em Jeddah algumas mulheres usavam abayas com mais cores, mas aqui quase não se via. Tínhamos, sim, abayas pretas com detalhes cinza ou azul marinho, mas nada muito além disso. Inclusive, logo quando cheguei, li uma notícia dizendo que algumas lojas haviam sido fechadas pela polícia religiosa por venderem abayas com detalhes mais chamativos.
O fato é que no fim de 2015 a polícia religiosa acabou perdendo o poder de prender as pessoas, ficando com a missão de apenas alertar quanto ao cumprimento das leis islâmicas; desde então, nunca mais os vi pela rua.
E não sei como nem quando isso aconteceu, mas sem mais nem menos aqui na cidade começaram a chover abayas que até então eu não imaginava que podiam ser usadas (podem rir, estamos falando de Arábia, não estou dizendo que tem abaya transparente ou que mostre a barriga, mas acredite: pra quem estava acostumada a ver um monte de abayas pretas, ver abayas coloridas, clarinhas, beges, verdes, por inteiro e não apenas pretas com detalhes, causa um certo espanto).
E se antes quem usava as abayas pretas, mas com detalhes coloridos, eram as estrangeiras, agora até as sauditas estão aderindo à moda das abayas clarinhas e fora do convencional. Lógico que a grande maioria saudita ainda usa abaya preta e cobre o rosto, mas hoje em dia, comparado com quando cheguei aqui, posso dizer que a variedade de cores cresce lentamente nos corredores dos shoppings.
E não somente isso, agora parece que é moda também usar a abaya aberta mostrando a roupa por baixo (ficou de cabelo em pé né?). Brincadeiras à parte, tenho visto muita gente andando mais à vontade. De vez em quando surge algum comentário de alguém que viu uma mulher sem abaya em tal lugar. Recentemente, uma saudita foi até presa por confrontar a cultura local dessa forma. Na minha opinião, tem que ter muita coragem. Eu não arrisco… se tem que usar abaya pra sair na rua, paciência, eu uso… até porque é uma preocupação a menos quanto a que roupa vestir, haha.
Outra mudança no que diz respeito às mulheres foi que, pela primeira vez, elas puderam votar e se candidatar em eleições municipais em 2015 (sim, aqui temos um Rei, mas cerca de dois terços dos “vereadores” são eleitos por voto), tornando a Arábia Saudita o último país a “permitir” o voto feminino. Muitas delas só se candidataram por birra mesmo, pra mostrar a visão delas de que o Islã respeita as mulheres também. Por volta de 18 mulheres conseguiram se eleger, das 900 que se candidataram.
Outras mudanças que na verdade ainda não ocorreram, mas tudo indica que mudem num futuro próximo, vem à seguir:
Pra quem já acompanha o blog, sabe que Saudi carrega o título de único país no mundo a proibir as mulheres de dirigir. Na verdade não existe nenhuma lei escrita dizendo isso, é mais um consenso popular; e também o país não concede carteira de motorista para mulheres, dessa forma impossibilita a direção. Conversando com amigas sauditas descobri que alguns pais ensinam suas filhas a dirigir, mas só visando o lazer e no deserto; jamais nas ruas.
Mas a tendência é de que isso mude em algum tempo. Recentemente, um príncipe saudita veio a público falar que está na hora de permitir que as mulheres dirijam. Inclusive por motivos econômicos… Vemos esforços tímidos em relação à diversificação da economia saudita, que ainda é baseada no petróleo, e a adição de mulheres ao trânsito certamente traria um balanço positivo na economia do país.
O mais interessante desse assunto de mulher no volante é que, em março de 2016, um avião pilotado por uma mulher fez um pouso na cidade de Jeddah. O país em que as mulheres ainda não dirigem já recebeu, pela primeira vez, um vôo pilotado por elas! É sentar e esperar ver esse dia chegar. Espero estar por aqui ainda pra contar pra vocês.
Pra finalizar eu vou falar de shows e cinema. Eles são considerados pecado e não são permitidos aqui no país. Isso não impede de alguns eventos acontecerem por debaixo dos panos, sem alarde e com público seleto. Porém, no final de janeiro, Riyadh foi o palco de uma performance de jazz; o primeiro concerto público nos últimos 25 anos, e na cidade de Jeddah, um famoso cantor saudita também fez seu espetáculo com casa lotada (de homens, claro). O rei, inclusive, fez um comentário de que nesse ano poderiam haver cinemas por aqui.
A população se divide; muitas pessoas condenam essas formas artísticas dizendo que são uma porta para o mal entrar. Mas, novamente, quem sabe a urgência pela diversificação na economia trace um atalho para essas mudanças chegarem mais cedo. E, provavelmente, se tivermos cinema e mais shows por aqui, não esperem Lady Gaga e Cinquenta Tons de Cinza. A mudança pode chegar, mas vai chegar bem tímida, vai por mim… hehe
Fora essas, tantas outras mudanças vão acontecendo no dia a dia. Hoje eu vejo muito mais mulheres trabalhando do que antes. No mercado que eu costumo ir, logo que cheguei tinha uma ou duas caixas mulheres. Hoje já são várias, e sempre têm novas em treinamento. Nosso aeroporto agora também conta com mulheres atendendo (antes elas só ficavam na parte de raio-x feminina, que é separada da masculina).
São mudanças tão pequenas e à passos de tartaruga, mas muito importantes, principalmente para as mulheres.
De novo, pode parecer bobagem, e você pode até rir do espanto que isso me causa, mas com certeza pra quem mora aqui, ver isso acontecendo tem seu significado especial.
14 Comments
Adorei seu texto ! Muito interessante !
Oi Gabriela, tudo bem ? Me diz uma coisa, a mulher pode viajar só ou ainda precisa de autorização do marido ? Tu tens blog ?
Obrigada.
Oi Raíssa.
Eu já viejai sozinha e em nenhum momento ninguém me questionou. Me hospedei sozinha num hotel na capital e também foi tranquilo. Porém uma vez em um hotel mais baratinho que pegamos la em Riyadh o recepcionista perguntou se éramos casados.
Eu fiz um curso com várias mulheres árabes na capital, algumas delas que também viajaram sozinhas pra lá. Eu não sei bem a que ponto existe isso de “pedir autorização” da parte delas. Acredito que vai da família delas ser mais tranquila ou não. Acho que acontece sim de o pai ou o marido proibir a mulher de viajar, no caso de serem muito tradicionais. Mas eu como estrangeira não tive problemas até agora.
tenho um blog, http://www.fuipraladebagda.blogspot.com
🙂
Hoje eu estava ouvindo uma medium brasileira falando que teve um aviso que 4 paises irao atacar a Arabia Saudita, espero que isso nao aconteça.
Se forem aquelas mesmas médiuns que disseram que o Brasil ia ganhar a copa, tudo bem. rsrs
Gabriela, que interessante! Morei em Jedá em 2013 e realmente, andávamos com o lenço no pescoço – mas sempre prontas prá colocar de novo caso os mutawas aparecessem! Fiquei muito feliz ao ler seu texto e imaginar essas pequenas mudanças. Aqui no seu vizinho Omã por outro lado, tenho a impressão que a sociedade está lentamente ficando mais conservadora. Tudo de bom prá você!
Acho que em 2013 era um pouco pior mesmo. Mas também depende a cidade e as pessoas que você convive. Eu tenho convivido com mulheres empreendedoras, então vejo muitas trabalhando, fazendo eventos, tocando empresas. É diferente se você convive com pessoas mais simples e conservadoras, aí a imagem vai ser de que todo o país é assim.
Ainda não conheci Omã, mas pelo menos vocês tem um pouco mais de liberdade em certas coisas que a gente né?
Oi Gabriela! Adorei teus posta, estamos indo morar em Riyahd eu e meu marido mês que vem e está batendo o nervosismo e as muiitas dúvidas nos consomem hehehe mas estou confiante que vai ser uma boa experiência. Tu sabes me dizer se eles realmente não gostam de cães e não os aceitam no país? Não estou preocupada com a ausência de bebidas e as roupas… E sim em não poder levar meus cães caso fique alguns anos lá.
Oi Angélica!
No próximo mês vou escrever sobre as coisas boas de morar aqui, no mes seguinte sobre as ruins. Mas até lá vc ja vai ter vivido essas coisas 😛
Quanto aos cachorros, não tem problema não. Você pode trazer sim. Conheço muita gente que tem. Aqui é mais comum gato. Alguns pet shops até vendem cachorros, mas é preciso encomendar, eu nunca vi cachorro exposto nas Pets.
MAs não tem problema não. Pode trazer o bichinho!
ola, tudo bom?falo de portugal, conheci um saudita ha 3 anos, comecamos por falar na net e hoje em dia viajamos muito, e ja temos casamento marcado para eu poder viver em jeddah, eu adoro a forma como os sauditas vivem, adoro, gosto da simplicidade, da bondade das pessoas, claro que sao timidas como a gabriela referiu, mas pergunto sera que isso nao e bom?gosto do facto de nao estarem sempre a olhar e a criticar, aquela e gorda, ou esta magra ou e baixa, eu nao vejo isso la, vejo sim respeito, vejo que as mulheres vivem despreocupadas, mas uma despreocupacao benefica, vejo sim que a maioria dos homens sao responsaveis, e a familia esta em primero lugar, aqui em portugal vejo sim mulheres casadas a sustentaram os seus maridos chulos e os filhos…vejo uma seguranca tremenda, posso andar com 10 quilos de ouro que ninguem me assalta,,,claro que a arabia tambem tem coisas menos boas, como em todo o sitio..mas eu nestes meses que fico em jeddah so vejo coisas boas…bj gabriela ganhou mais uma leitora…kkkkk
OI Sofia!
Mulher é igual em qualquer lugar do mundo, elas comentam sim se estão gordas ou magras, não pense que é diferente. Só não é tanta pressão como no mundo ocidental.
A grande maioria está mais preocupada com os filhos, elas querem emagrecer quando passam da conta (eu trabalho em academia, pode acreditar no que eu digo) mas como o “trabalho” principal é a família, não existe uma cobrança em estar em forma da mesma forma que nós temos e criamos em nossos países.
Uma coisa que notei também é que elas nunca vão “falar mal” de outra mulher na sua frente se elas não tem plena confiança em você.
Lá no Brasil a gente mal conhece uma pessoa e já se sente “à vontade” pra dar pitacos na vida alheia dos outros, aqui eu senti que elas só falam o que realmente pensam depois que confiam em você.
Uma coisa bonita que acho daqui é o “mashallah”, é um elogio que elas fazem ao mesmo tempo que querem dizer que não sentem inveja daquilo… tipo um elogio seguido de um Deus te abençôe. Acho bacana isso. Deixando claro que o elogio é sincero sem botar o “olho grande”.
Outro ponto que eu PRECISO escrever sobre é isso dos homens que você falou. A gente acha que a mulher aqui nao tem voz… mas é tanto privilégio que a gente tem por ser mulher… fila especial no banco, privacidade em alguns lugares, a mulher é sim protegida por aqui, por mais que essa proteção as vezes pareça um pouco de opressão pra quem não vive aqui e não entende a dinâmica.
Segurança nem se fala né. Eu tenho até medo de pensar em como vai ser quando for pro Brasil… A gente desaprende a desconfiar dos outros..
Que bom que gostou do texto :*
verdade, talvez seja isso, sabe me dar uma informacao, eu e o meu noivo como referi temos andado enrrolados com o sef para casar em portugal,nao seria bem mais facil casar em jeddah?e ja agora voce trabalha num ginasio?desculpe perguntar , eu adoro desporto, e sempre tive a ideia que era complicado trablhar na arabia, onde ha mais vagas seria mesmo nos hospitais e em escolas…bj
Que legal seu texto , eu e meu marido recebemos uma oferta de trabalho para darmos aulas de Jiu Jitsu num centro esportivo em Jeddah , eu para mulheres e meninas claro , eles estão querendo implantar esse esporte para as mulheres e o Centro já possui aulas de Crossfit ! Olha que bacana , só estamos aguardando os trâmites do visto , eu sou brasileira e meu marido Holandes e casamos aqui no Brasil e ainda não validamos na Holanda , eles querem me dar um ” sponsor visa ” mas por conta de ainda não ter legalizado o casamento na Holanda acho que terão que achar outro meio , esse sponsor visa para mulheres estrangeiras trabalharem lá , é comum ? Já ouviu algo parecido ? Abraços
Sim Lidiane, todo pessoa que vem trabalhar precisa de um sponsor. Independente se é homem ou mulher. Temos mulheres solteiras que trabalham aqui, vieram sem marido, sem problema algum.
Eu trabalho com fitness aqui, e nos ultimos meses algumas leis mudaram e agora está o boom das academias. Estão abrindo várias mesmo.
Os tramites do visto sempre levam um tempo mesmo, em media uns 3 meses.
Só não sei daí a questão da validação do casamento pra morarem juntos como funcionaria. Melhor mesmo vir com tudo certinho pra não se incomodar.