O que o ano de 1920 diria a 2020?
Prezado, sei que pareço velho, que não manejo os aparelhos eletrônicos com destreza e não tenho a mínima ideia de como acessar uma informação pela internet. Sou do tempo do papel, daquele amarelinho desbotado cujo cheiro não só impregnava no nariz, mas seguia horas nas entranhas.
Sou um senhor de 100 anos que já viveu e reviveu muitas histórias. Que se espanta com tamanha rapidez e ignorância com que o mundo gira. Com o absurdo de novidades diárias e, ao mesmo tempo, com a mesmice a que são tratadas.
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Você pode me achar caduco e obsoleto, mas se parasse um minuto para me ouvir com atenção, e não ignorasse as minhas memórias e tentasse calar a minha voz, não teria sido tão ingênuo.
Eu também arrastei muitas mortes, na realidade, mais de 50 milhões, e deixei que um terço da população se infectasse por um micro corpo que, em princípio parecia inofensivo, ainda mais diante do grande e verdadeiro mal que me assolava – a Primeira Guerra Mundial.
Aquele vírus, que todos acreditavam ser mais uma bactéria, invadiu os corpos frágeis das crianças, mas também foi potente com os mais velhos. Até com os que se achavam inabaláveis, que estavam na faixa produtiva de 20 a 40 anos, foram bastante castigados, e olha que nem tinham doenças pré existentes.
Sabe 2020, se eu te dizer que as nossas histórias são bem mais semelhantes do que se ouve por aí, te deixaria abrumado.
O mês de março para o meu antecessor, o ano de 1918, também foi surpreendente. Foi lá que surgiram os primeiros brotes, em terras ocidentais, mas especula-se que também já se fazia presente na China, ano antes.
Como um microorganismo sazonal, acreditava-se que com o advento do verão e de dias mais calorosos, ele diria adeus. Ledo engano! Em setembro, a segunda onda deu as caras e acredite, foi ainda pior. Entre o inicio da primavera no Hemisfério Norte e o mês de novembro, a pandemia atingiu seu ponto máximo; altamente letal.
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Pena que foi só após essa devastação que o governo do Tio Sam resolveu decretar isolamento e quarentena no país. Mas isso você aprendeu direitinho, ou melhor, não aprendeu nada, porque continuou sendo tardio e pouco eficaz.
Meus antecessores de 1918 e 1919, também não tinham vacinas, tampouco antibióticos para combater a influenza, e sabe o que usaram para controlar e tentar combater a pandemia? Isolamentos físicos e sociais, quarentena, bons hábitos de higiene pessoal, uso de desinfectantes e limitações de reuniões.
É 2020, as minhas velhas manobras continuam sendo as mais eficazes!
E por que a Espanha não consegue controlar a pandemia?
Pena que lá, como agora, todas essas medidas foram não igualitárias; uns países, aqueles que acreditaram na ciência, foram mais abertos e plenos em seus combates, mas muitos outros…já sabe né: só uma “gripezinha”.
O nosso H1N1, assim como o seu SARS-CoV-2, se manifestava pelas dores de cabeça, dificuldades respiratórias e febres alta, e se transportava de um continente a outro muito rapidamente.
Lá estávamos em tempos de guerra, de deslocamentos e trânsito de soldados; aqui há uma circulação gigante de aviões e mercadorias. Globalização, abertura de fronteiras, livre circulação; desigualdade, refugiados, exploração comercial.
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Ademais, por conta de rótulos, o nome popular de nossos vírus acabaram por discriminar uma população. O meu gripe espanhola, que na verdade nem nasceu em terras flamencas (só foi reportado com menos controle na Espanha), discriminou aquele povo, como fez com o seu vírus da China.
Eu já te falei que por aqui também teve muita manifestação negativista? Descrédito total aos dados científicos, bispos convocando missas gigantes, festas culturais e aglomerações sendo mantidas.
Um pouco daquilo que você vê com as festas de faculdades, as campanhas políticas e com os fervorosos aficionados por futebol.
A gente até chegou a uma terceira onda, mas felizmente não foi generalizada, e não porque descobrimos uma vacina ou aprendemos a nos auto cuidar e pensar mais altruisticamente.
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O final global daquela pandemia, já em 1920, se deu pelo desenvolvimento de uma imunidade coletiva ao vírus. Pura sorte, ou como diria Darwin, fruto da seleção natural.
Antes disso, também vimos o interesse político e a informação e formação de especialistas em infectologia e saúdes públicas nortearem o êxito de seus países nessa guerra contra a pandemia.
Na verdade, o mais importante que tenho a dizer à você e, por favor me ouça, é: vencemos a pandemia, porém com muitos mortos e feridos.
Presenciamos um medo social a medida que veiculava mais informações e aumentavam os números de infectados, mas quando os efeitos baixaram, as pessoas também deixaram de ser preocupar.
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Eu, um velho senhor de 1920, vivi a pós pandemia de 1918 e o que assisti foi uma euforia coletiva em todos os sentidos, inclusive econômico. Os sobreviventes da “gripe espanhola” literalmente incorporaram a filosofia do “carpe diem”.
Ao mesmo tempo, regimes totalitários começaram a despontar com o cultivo de controle de fronteiras, desejos de autarquias e muito individualismo.
Você 2020, que está me repetindo muito, dê um basta aos lapsos de memória e tente mudar o curso desta história. Realmente faça diferente, acredite na ciência, use máscaras, não se aglomere, espere mais um pouco para visitar e abraçar todos os seus amigos.
Ao final, a pós pandemia do século passado não produziu uma revelação e nenhuma transformação global, pois passado 100 anos e muitas inovações, tudo se repete.
Enfim, qualquer medida antes da pandemia se qualifica de exagerada e, em troca, posteriormente se considera insuficiente.
Seja consciente ao dar as boas vindas ao seu sucessor!