Nos posts passados, comecei a explorar os fundamentos da felicidade dinamarquesa e fiquei extremamente honrada em receber comentários de leitores que enriqueceram o debate, seja trazendo outros pontos de vista que minha precária memória poderia ter ignorado, ou questionando certas perspectivas. Portanto, este terceiro e derradeiro post buscará, além de explicar a felicidade dinamarquesa, também colocá-la em cheque.
Em minha breve pesquisa – e também com base nos comentários de vocês – percebi que a felicidade dinamarquesa não seria possível sem a ampla e generosa gama de benefícios sociais aqui disponíveis, e mais do que equalizar as diferenças sociais, estes benefícios proporcionam bem-estar e segurança à população.
Quando eu morava no Brasil, vivia em eterna angústia sobre o amanhã, uma condição clínica também conhecida como Síndrome do Peru de Natal – de quem morre figurativamente já na véspera do acontecimento. Pois bem, mesmo tendo estudado em uma universidade pública, teria sido impossível me manter sem o auxílio de um consórcio de fundações mantenedoras cujas verbas denominam-se mãetrocínio e paitrocínio; as magras bolsas de estudo ou de estágio, em torno de 300 reais por mês, mal cobriam meus gastos com os livros da faculdade e com as passagens de ônibus. Até hoje sou grata ao Restaurante Universitário da Universidade Federal do Rio Grande do Sul pelos 5 anos nos quais usufruí do seu farto almoço a R$ 1,30, incluindo audaciosas apoteoses gastronômicas como a famigerada lasanha salgada de bolacha Maria.
Mesmo sendo privilegiada por poder contar com o apoio familiar, a pressão para conseguir um emprego não me abandonava, e depois de empregada, me vi soterrada em carga de trabalho que faria Atlas encolher os ombros, sob a constante ameaça de que “se tu não queres, tem quem queira”, o que me fez ter que tolerar uma vasta gama de chefes abusivos.
Por mais desgastante que fosse a minha rotina, eu a considerava normal, afinal, cresci com uma mãe que trabalhava 3 turnos e, mesmo tendo me criado sozinha, ainda achava tempo, nesse ritmo à la Germinal, para decorar meus bolos de aniversário e fazer meus docinhos favoritos. Maternidade, aliás, era algo que eu nem cogitava quando morava no Brasil, pois eu teria de escolher entre prover educação e saúde de qualidade para a criança ou ter tempo para ver o infante acordado, ou seja, se eu não trabalhasse no ritmo da escravidão contemporânea, jamais poderia custear gastos básicos de uma família, e isso paradoxalmente significaria passar uma parcela ínfima de tempo ao lado dessa família pela qual eu estaria sacrificando meus dias e noites.
Enquanto isso, na Dinamarca, os jovens são pagos para estudar, ou seja, recebem um generoso valor do governo para custearem suas vidas de estudante, e poucos são aqueles que precisam morar com os pais ou mesmo dividir apartamento com amigos – uma realidade diametralmente oposta à do Brasil, onde os que não contam com a boa vontade e paciência dos pais têm que se apinhar e dividir moradia com o máximo de pessoas possíveis para diluir as despesas. Entre meus amigos, a falta de grana no período estudantil levava a criatividade ao seu apogeu: incontáveis variações gastronômicas de Miojo com requeijão e salsicha, uso de ferro de passar roupa como aquecedor no inverno e do “rabo-quente”, um aquecedor elétrico portátil, para cozinhar arroz quando o gás acabava.
Depois de ingressarem no mercado de trabalho, os dinamarqueses estão amparados por uma legislação trabalhista protetiva, que lhes assegura o pagamento de um percentual do salário em caso de demissão (claro, existem certas condições, como ir aos centros de empregos, enviar diversos currículos para diferentes vagas por semana, etc.), e não só aqui a licença maternidade pode chegar a um ano para a mulher como sim, há também um benefício social para ajudar com as despesas das crianças. Vale ressaltar que cada um destes benefícios possui regras específicas para a sua concessão, mas de qualquer forma eles asseguram um mínimo de bem-estar social para parcela significativa da população, e isso é um ingrediente fundamental da felicidade do país: a certeza de estar amparado.
Contudo, como mencionei no primeiro post desta série, eu demorei a entender essa tal de felicidade dinamarquesa, especialmente porque partes do Reino da Dinamarca, como a Groenlândia, contam com alarmantes índices de suicídio, e os países nórdicos são campeões no uso de antidepressivos. As relações sociais e familiares mais distantes em nada contribuem para este quadro, que se torna ainda mais complexo ao lembrarmos que a Dinamarca ostenta posições altíssimas no ranking mundial de alcoolismo na juventude. Somem-se a isso tudo os longos e escuros invernos, e eis que parece impossível ser feliz neste recanto lúgubre do mundo, no qual os estrangeiros que aqui vivem frequentemente sofrem de depressão profunda. É preciso entender, entretanto, que o parâmetro utilizado pelos dinamarqueses para avaliar sua felicidade é, em verdade, bastante modesto se comparado aos padrões brasileiros típicos. Em síntese, um dinamarquês típico se contenta com bem menos, contanto que este “menos” seja o “menos” certo: eles não precisam de serviçais na casa, de casas grandes, carros ou jóias, mas não sabem viver sem a liberdade que só um ambiente seguro proporciona, e não se importam em pagar uma carga tributária brutalmente pesada para assegurar a continuidade desse modo de vida, que prima pelo bem-estar de muitos, e não de poucos. “Yo soy yo y mis circunstáncias”, dizia Ortega y Gasset, e os dinamarqueses entenderam que uma sociedade feliz e segura tem um preço a ser pago por todos.
Ao longo de quase dois anos aqui, ainda tenho muito a descobrir sobre essa tal felicidade dinamarquesa, e quem me conhece sabe que sou uma crítica implacável de diversos aspectos da sociedade aqui, mas a verdade é que a Dinamarca me ensinou a ser feliz à sua maneira, de um jeito simples, despretencioso e confortável, e muitas de minhas angústias e cobranças foram ficando para trás. Não importa aonde eu vá, carregarei comigo esta lição preciosa: a felicidade é, acima de tudo, uma questão de atitude, e seja em Copenhague ou em Catuípe, você sempre poderá optar por um modo de vida que lhe traga alegrias sem fronteiras.
5 Comments
Maravilhoso, Camila! Quem sabe este post não me estimularia a passar uns tempos por aí? A questão é apenas convencer o meu marido, que é dinamarquês! ❤❤❤
Querida Camila!
Gostei muito da forma como você tenta explicar essa tal de felicidade dinamarquesa! Deve admitir que me animei e chego a pensar na possibilidade de passar uns tempos por aí! A única questão que teria que resolver seria de que maneira conseguiria convencer o meu marido, que é dinamarquês! ❤ ❤ ❤
Olá Tita! Muito obrigada!!!!
Olha, sugiro que tentemos trazer Søren no verão pra facilitar o processo….é o final de semana mais bonito do ano 😉 Beijos
Camila seu texto está maravilhoso!
Você escreve de forma rica e muito prazerosa.
Como gostaria de fazer uma mistura de Brasil com Dinamarca, rsrs
Parabéns!
Muito obrigada, Camila!!!! Espero que você continue nos acompanhando por aqui, e que você consiga fazer essa inusitada mistura 🙂