Os fumantes de Bucareste.
São 10:00 da manhã, começo de outono. Tomo o meu “latte” no terraço iluminado de um Café. O calorzão passou e o frio, ainda longe de chegar, faz daquele tempo o momento perfeito para aproveitar esse restinho de sol. Sinto o fresquinho do dia, mordiscando uma pequena salada de tomate e pepino, acompanhada por queijo feta e pão; tudo bem, tudo bom, respiro o puro do ar, que delícia, até que alguém senta na mesa ao lado e… acende um cigarro.
A fumaça vem, claro, em minha direção. Sou daquelas com faniquito a cheiro de cigarro. Mudo a posição e tento um novo ângulo. O vento me segue e empurra a fumaça, novamente, para o meu lado. Desisto e peço para trocar de lugar, mas, não mais no terraço. De repente, nas outras quatro mesas ocupadas, todo mundo também começa a fumar. Para fugir deles, preciso me esconder no salão fechado. Lá dentro, o fumo é proibido, mas, até há pouco, mais precisamente março de 2016, fumar era permitido em qualquer lugar, inclusive em restaurantes, escritórios, shoppings e prédios públicos.
Romenos fumam muito: em casa e enquanto dirigem – incluindo nessa categoria, o motorista de táxi, com você sentadinha lá atrás, como passageira; durante o intervalo de alguma atividade física e na piscina do clube; antes de subir e logo depois de descer do ônibus; nos terraços de restaurantes, bares e cafés e também nas reuniões de cafezinho que, para se adequar à nova lei, são feitas embaixo dos prédios, com grupos imensos de gente compartilhando um cigarrinho.
Fumam tanto que, na contramão do mundo, só agora a lei pegou, mas não sem antes sofrer uma pequena modificação: como a rejeição à proibição absoluta de cigarros em qualquer área pública foi bastante alta, passaram a permitir o fumo em espaços comuns cobertos, desde que também abertos.
E foi assim que migraram todos do salão principal para o terraço, não sendo raro entrar em um restaurante e encontrar esta parte da casa lotada, enquanto o resto fica às moscas. Também é muito normal receber um menu adicional ao de pratos e bebidas: o menu dos cigarros. Nessa carta você escolhe o que gostaria de fumar e não, não estou falando de charuto, estou falando de cigarro mesmo, e em qualquer restaurante que não seja necessariamente especializado no assunto.
Eu, que de fumante nunca tive nada, fico intrigada com o porquê de alguém inalar fumaça pelo nariz abaixo. Intrigas à parte, deixo logo avisado que de politicamente correta a minha não tem nada. Não quero prejulgar ninguém. É só curiosidade mesmo. E por isso observo os fumantes.
No carro ao lado, enquanto espera o verde do sinal, uma senhora fuma com classe e janela aberta. Como é que se fuma com classe? Veja bem, deixa eu explicar, tem alguma coisa a ver com o modo como segura a finura daquele cigarro longo: é delicado. Ela pousa a mão no ar, como se de ar a mão também fosse feita, traz o cigarro, com suavidade, até a boca e traga, inclinando a cabeça levemente para trás. Seu olhos fechados transpiram cansaço; seu rosto, com marcas envelhecidas de beleza, também. Na sequência, cigarro em riste e punho fora da janela, e o descartar das cinzas com um movimento simples de polegar.
Cruzando a faixa de pedestres, um Harry Potter crescido fuma com urgência. A mão curva e os gestos impacientes encurtam, ainda mais, o polegar e o indicador que seguram um já quase filtro de cigarro. Acompanhando o movimento, o corpo andrógino, dos muito jovens, segue com pressa e introspecção. Cabeça baixa, passos firmes, fuma olhando para o chão enquanto pisa com a rapidez de seu tênis gasto. Uma, duas, três, quatro tragadas e o cigarro é jogado na rua.
No pátio de um restaurante, a moça loira fuma com lentidão e disfarçada lucidez: seus movimentos pretendem-se casuais, mas sua autoconsciência denuncia o treino. A mão espalmada segura o cigarro recém-acendido entre o indicador e o médio. A mesma mão espalmada leva o cigarro até a boca. A seguir, o trago e o sopro, sincronizados com o jogar dos cabelos e o olhar para o céu. A mão espalmada espera no ar. E repete-se o movimento, até esmagar o cigarro com indisfarçada força no cinzeiro.
Em Bucareste, como por toda parte, fuma-se para si, para os outros e com os outros. Tem um tudo de vício e um muito de hábito: por aqui, as pessoas interagem através do cigarro, associando a ele o prazer de sair de casa e socializar. Daí a mudança na norma, no início idealizada para ser 100% proibitiva, que terminou por tolerar o fumo em lugares cobertos.
Contudo, passados alguns meses da entrada em vigor da nova lei, hábitos e opiniões começam a mudar. As notícias contam que donos de restaurantes e casas noturnas, a princípio preocupados com uma possível baixa na frequência de seus estabelecimentos, estão de bem com a novidade. Não só os fumantes estariam conformados em fumar num cantinho reservado, como a proibição passou a atrair um público novo, o dos não fumantes, que evitavam certos ambientes para não saírem de lá defumados.
Seja como for, num país com 37% de fumantes diretos e alta exposição de crianças ao fumo, costumes saudáveis merecem e devem ser incentivados. Um viva à lei de março!
4 Comments
Cristina, você escreve lindamente. Sou sua fã!
Ótimo texto, realmente.
E fico feliz em saber da lei de março de 2016! Morei em Praga antes de lei similar ser aplicada por lá e voltava para casa defumada, como vc descreveu.
Que bom que gostou, Tatiana! Agora pelo menos temos a opção de não sairmos defumadas!
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