Março, mês em que celebramos o Dia Internacional da Mulher. No Japão, o Hina Matsuri ou o “Dia das Meninas” quando se reforçam os votos de felicidade, saúde e prosperidade para as meninas cercado de símbolos e comidas típicas. Mas esta época tão festiva para as mulheres é também um momento de reflexão sobre um tema espinhoso: relacionamentos abusivos.
Escrever sobre esse tema não é das tarefas mais fáceis. Lembro-me de experiências próprias e apenas quem já passou por isso entende o quanto isso dói na alma. Por mais que você tenha reconstruído a sua vida, algumas feridas não cicatrizam mas permanecem lá, sob camadas e mais camadas de “preciso superar isso” e muitas doses de “vida que segue”, sangrando em silêncio para não incomodar ninguém ou para que as pessoas não pensem que você está querendo se vitimizar.
E nessa armadura de guerreira que a gente veste todos os dias para enfrentar a vida, tentamos proteger nossos sonhos e, algumas vezes, nossos medos. E se você também traz essas marcas dentro de si, eu sei que também não é fácil ler sobre isso.
Nunca os relacionamentos abusivos estiveram tão em evidência como agora: notícias sobre feminicídio, pautas feministas e manifestações de rua, formação de coletivos femininos nas redes sociais ampliando o debate, campanhas como MeToo com alcance mundial expondo casos e mais casos de abuso…
A profusão de informações pela internet nos dá uma melhor dimensão da questão, que independente do país em que ocorra, a cultura ou o contexto em se insere, os relacionamentos abusivos são uma das múltiplas facetas da violência contra a mulher. E dentro da imigração internacional esta acaba sendo um potencializador de algo que por si só já é terrível.
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Longe do seu país, a mulher imigrante, ainda mais no Japão (do outro lado do mundo, cujo acesso não é dos mais simples nem baratos) torna-se alvo mais fácil desse tipo de relacionamento por inúmeras questões. Do afastamento da família e dos amigos, a dificuldade de estabelecer novas relações levando ao isolamento e a um estado de maior fragilidade emocional (agravado em muitos casos pelo desconhecimento do idioma local e problemas de adaptação ao novo estilo de vida, o choque cultural).
Some-se a isso a sobrecarga de longas e exaustivas jornadas de trabalho, muitas vezes a dependência financeira do companheiro seja pela dificuldade de encontrar trabalho, um salário suficiente para as despesas, ou até para fazer horas-extras ou trocas de turnos por motivos diversos (o que muita gente sabe que são vitais para se ter um rendimento razoável na maioria dos trabalhos aqui).
Outras vezes o local de residência é o da empresa empregadora e se o companheiro for o único que trabalha ou é o responsável pelo imóvel, então a situação se torna ainda mais difícil. Ou até mesmo a dependência em aspectos corriqueiros do cotidiano, como ter carta de motorista e meio de locomoção próprio, ir ao médico ou resolver problemas em órgãos públicos de documentação, impostos, seguros, escola e outros incluindo visto de residência.
Aquilo que parece tão mais simples de se fazer em nosso país pode se tornar um verdadeiro desafio em outro, e no caso japonês, muito em função do idioma. Sobretudo para quem tem filhos, os problemas se multiplicam e parecem não ter fim. Acredite, eu passo por isso e sei como é duro.
O príncipe (nem tão) encantado
E nessas horas de maior fragilidade sempre aparece o “príncipe montado no cavalo branco”, com flores e poesia e a promessa de que vai cuidar de você pra sempre – e da sua prole, se você tiver. E da sua família. No início tudo parece um sonho, ambos foram feitos um para o outro e você pensa ter encontrado seu final feliz.
Afinal somos bombardeadas o tempo todo pela mídia, propaganda, filmes, livros, família, amigos, periquito e papagaio de que só é feliz a mulher que encontra um amor para chamar de seu, que coloque uma aliança em seu dedo e proteja-a de todo o mal.
Até aí nenhum problema, mas eis que ele passa a se comportar de forma estranha, as palavras vão se tornando ríspidas, os gestos agressivos (um empurrão, um apertão no braço, um objeto atirado na parede), as brigas frequentes (e adivinha de quem é a culpa todas as vezes)…
Ele a isola dos amigos e familiares, joga na sua cara a sua dependência, passa a fazer cobranças descabidas, tem um ciúmes doentio ou desprezo pela sua presença, diminui suas conquistas e qualidades e não a apoia em suas decisões e projetos. Os gestos passam a virar agressões, um tapa, socos, chutes. E então você começa a fazer concessões, a mudar o seu jeito de ser e de agir, passa a evitar outras pessoas, enfim pisa em ovos para não “dar motivos para brigas e não estressar mais o seu companheiro” porque afinal esse é o seu dever como mulher. Será?
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Um belo dia você se olha no espelho e percebe, com um certo desapontamento, que não se reconhece mais naquela mulher refletida. O olhar já não tem o mesmo brilho, e você se pergunta em que momento se perdeu de si mesma.
Contudo, resignada em manter a paz em seu relacionamento você se diz que aquilo é uma bobagem da sua cabeça e isso logo passa, atropelado pela rotina atarefada. Mas não. Todos os dias aquela sensação estranha no peito de que algo está errado, uma angústia ou um vazio que insistem em atormentá-la por mais que tente ignorar. Até que você se sente sufocada, pressionada… infeliz.
E culpada! Começam os “talvez”: talvez seja uma fase, o estresse, a rotina, ele tenha razão e que é uma boba, exagerada e ingrata por não ver o quanto ele se esforça por você e sua família… Talvez!
Pois eu digo a você, não caia nessa! E se já caiu, acorde e saia desse relacionamento o quanto antes! Não permita que chegue às últimas consequências. Nos últimos anos vêm crescendo as denúncias de agressões e até de feminicídio na comunidade brasileira, tristemente veiculadas na imprensa, nos grupos das redes sociais, nas conversas entre amigas.
Eu sei que é difícil até mesmo reconhecer que se vive um relacionamento abusivo. Fomos condicionadas a perdoar, a tentar “consertar” o outro, a sermos as âncoras do casal. E que o medo do que o futuro reserva se você tentar quebrar esse ciclo pode ser paralisante, e até mesmo pelo “amor” que sentimos pelo outro que insiste em nos pedir para ter mais paciência na eterna esperança de que o outro mude.
Eu entendo a sua confusão, o medo, a esperança. Mas posso te afirmar que há coisas muito melhores adiante se você arriscar. Procure ajuda, mesmo que você não possa agir de imediato, se informe sobre tudo o que você precisa para mudar a sua vida, busque apoio seja de amigos, familiares, psicólogos ou de órgãos públicos (que vão da polícia à prefeitura, Consulado Brasileiro ou ONGs), principalmente se houver crianças envolvidas.
Aqui no Japão a mulher dispõe desde medidas judiciais protetivas, há abrigos para acolher vítimas de violência doméstica até que elas possam reconstruir suas vidas e mesmo auxílio financeiro em alguns casos. E acima de tudo lute pela sua independência sempre!