No mês de julho perdemos Simone Veil, grande personalidade da vida política e da história francesa, cuja morte causou forte comoção em todo o país. Isso se deve ao fato de ela ser um ícone da luta pelos direitos da mulheres e, consequentemente, pela luta feminista. Tudo o que essa sociedade linda precisa, né?
Simone também foi uma sobrevivente do Holocausto. Ela foi deportada para o campo de extermínio de Auschwitz durante a ocupação alemã na França e de toda a sua família, somente ela e a irmã sobreviveram. Logo em seguida, retornou a Paris onde concluiu sua formação em direito e em ciências políticas.
Mas afinal, qual a razão de falar hoje sobre Simone Veil?
Quando me instalei em Paris, uma das minhas primeiras percepções sobre as diferenças culturais entre o Brasil e a França foi em relação ao comportamento de nós, mulheres brasileiras, e o das francesas. Eu fiquei instigada com a forma como elas afirmam a sua independência.
Quando me refiro a essa questão quero dizer que em um relacionamento, por exemplo, é normal que o casal divida as contas meio a meio, sem a pressão social de que o homem deve ser o principal responsável pelos gastos financeiros. Ser “dono de casa” também não é um termo que assusta; muitas mulheres são responsáveis pelo sustento da família enquanto seus companheiros se ocupam dos afazeres domésticos. Inclusive na grade maioria das famílias francesas contemporâneas os homens dividem com suas companheiras as tarefas domésticas tranquilamente.
Imagine a cena: você, acordando no sábado para enfrentar sozinha aquela pilha de louça suja e a casa inteira para limpar, porque o seu namorado/marido está sentado confortavelmente no sofá apreciando o jogo. Pois é, as francesas da nova geração não aturam essa, não!
Aliás, aproveito para exaltar esse momento dizendo que estou sentada à frente do computador escrevendo esse texto enquanto meu super namorado francês está fazendo a faxina da casa! Vou te contar que igualdade é mara, vive la France (Viva a França)!
As mulheres também podem viver com seus parceiros sem a necessidade de formalizar a união com um casamento. Além disso, elas são práticas e se aceitam como são fisicamente, pois para intervenções cirúrgicas com fins estéticos ainda resta um tabu na França. Finalmente, as francesas são menos apressadinhas para ter filhos, de uma maneira geral, se comparamos ao Brasil. Aqui a média é a partir dos 28 anos; claro que isso leva em conta o interior da França, que apresenta um contexto bem diferente das grandes cidades, mas em Paris é bem comum as mulheres engravidarem em torno dos seus 35 anos.
É nesse sentido que a causa feminista na França deve muito a Simone Veil. Durante o seu mandato como Ministra da Saúde em 1974 ela facilitou o acesso aos métodos contraceptivos e foi responsável pelo projeto de lei que descriminalizou o aborto, conhecido na França como interrupção voluntária da gravidez (IVG).
Apresentando um dos discursos mais emblemáticos da história da Assembléia Nacional, a então ministra defendeu o seu texto a favor do aborto durante 3 dias e 2 noites, diante de parlamentares predominantemente homens. A lei Veil foi então promulgada em 1975. O seu argumento principal era a luta contra a desigualdade entre mulheres de diferentes classes sociais no acesso ao IVG, pois são sempre as mulheres de meios mais modestos que são submetidas a consequências mais trágicas.
É claro que a descriminalização do aborto repercute no comportamento social e no empoderamento das mulheres.
Lei Veil e o aborto na França
Atualmente o aborto é um direito garantido pela lei e a mulher pode optar pelo procedimento até 3 meses do seu período de gravidez. Mas apesar do fácil acesso e de um sistema público de saúde de qualidade que oferece todas as informações necessárias, o assunto continua sendo um tabu.
Segundo os últimos dados do Instituto Nacional de estudos demográficos, depois de 40 anos da aprovação da lei as taxas de IVG caíram significativamente e a idade média das mulheres que recorrem ao procedimento é de 27,5 anos. Ainda segundo esse estudo, uma mulher em cada três pode recorrer ao IVG durante a sua vida.
Desde a aplicação da lei vários pontos foram modificados e hoje é possível, por exemplo, que o procedimento seja reembolsado pelo sistema público de saúde. O ponto mais importante nessa discussão é que a legalização da prática salvou inúmeras vidas, mesmo que a ideia possa parecer paradoxal e ainda causar forte polêmica.
A luta feminista
A França é considerada um dos berços da luta feminista, principalmente em razão de eventos históricos como a revolução francesa, onde foram denunciadas as condições de opressão das mulheres e mais recentemente, em 1968, com o movimento estudantil que reivindicou, dentre várias causas, a liberalização sexual. Além disso, o meio científico e intelectual conta com grandes nomes como Simone de Beauvoir, Hubertine Auclert, dentre outras que defenderam fortemente o direito das mulheres e influenciaram no comportamento da atual sociedade francesa.
Mas o feminismo aqui é paradoxal. Costumo ouvir com frequência que tivemos um ápice, onde conquistas significativas aconteceram, mas hoje estamos em um périodo estagnado. E isso posso comprovar pela minha própria experiência: a França ainda é, apesar de tudo, um país extremamente machista.
Podemos observar isso em várias instâncias. Tanto no campo político como nas instituições públicas, por exemplo, os altos cargos são predominantemente ocupados por homens; os salários também ainda não são igualitários e as mulheres ainda precisam se esforçar absurdamente para serem levadas a sério e evoluir profissionalmente.
É claro que se compararmos ao Brasil estamos mil passos à frente, mas a estrada continua longa. Embora o aborto sendo legalizado, muitas mulheres na França ainda continuam sendo vítimas de assédio e de violência, de agressão física ou verbal em função de suas opiniões e desejos, e de esteriótipos que as reduzem às suas aparências, menosprezando suas capacidades intelectuais.
A morte de Simone Veil nos lembra que 40 anos depois de uma lei libertadora, a luta ainda continua e que nós, mulheres e homens, precisamos nos conscientizar disso.
2 Comments
Amy, adorei o seu post, super relevante!
Tb sou colunista aqui do BPM pela França, moro em Montpellier. Quando me mudei pra cá tb senti a diferenca da forma como as mulheres se portam e de certa forma sao até mais respeitadas.
Mas como vc disse éalgo que precisa continuar sendo construído por todos dia a dia.
Grande beijo!
Oi Julia, obrigada pelo seu comment! ?
Exatamente, sinto que elas impõem mais a presença e as suas opiniões.
Bjos