O que diz o Tratado de Haia em relação a guarda de crianças?
Maio de 2015. Era dia das mães no Brasil e Roberta estava comemorando a data com seu filho Lucas e familiares no litoral de São Paulo quando agentes da Polícia Federal invadiram a residência onde eles estavam. Os agentes os levaram a força para o aeroporto Internacional de Guarulhos. Em suas mãos os agentes tinham uma ordem de prisão contra Roberta bem como a extradição imediata dela e de Lucas para a Suécia. Os agentes não os deixaram fazer as malas, e nem os passaportes eles puderam levar consigo. Justo no dia das Mães começava o pesadelo da Roberta. Pesadelo que durou quase dois anos e que deixou sequelas profundas tanto nela quanto em seu filho.
Mas vamos voltar ao tempo para entender como tudo começou. Em 2005, Roberta conheceu um dinamarquês que vivia no sul da Suécia e era funcionário do governo. Roberta engravidou, e a criança (Lucas) nasceu no Brasil, e sempre teve nacionalidade brasileira. Roberta tinha sozinha a guarda da criança.
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Antes do nascimento do Lucas, o relacionamento entre Roberta e o dinamarquês chegou ao final, mas a convivência entre eles era boa. Roberta trazia Lucas à Suécia com frequência para que ele pudesse conviver com o pai. Roberta e Lucas chegavam a passar 2 meses na Suécia e depois retornavam ao Brasil. Devido a boa convivência Roberta achava que ela e o pai do Lucas estavam de acordo em relação a custódia da criança, ou seja, que ela teria a guarda total do mesmo e que o menino visitaria o pai com frequência. Neste tempo Roberta não tinha informações sobre o Tratado de Haia* e por isso nunca se preocupou em ter um documento lavrado em cartório especificando que Lucas teria apenas a cidadania brasileira, viveria no Brasil até começar o ensino fundamental, e que a Roberta era a única responsável legal por ele.
Até que veio o dia em que o pai da criança mudou de opinião, e passou a exigir que Lucas tivesse a cidadania sueca, e que a custódia do menino fosse compartilhada. Em 2007, Roberta precisou fazer uma cirurgia e o pai da criança foi para o Brasil para ajudar a ficar com Lucas. Mas o rapaz tinha outros planos. Enquanto Roberta se operava, ele pegou Lucas – com então 3 anos – e o trouxe para a Suécia, sem autorização prévia da mãe. Recém operada, Roberta teve que esperar um mês para vir ao encontro do filho.
Em 2008, Roberta e Lucas regressaram à Suécia, mas desta vez a recepção foi diferente. O pai do Lucas não queria deixá-los retornar ao Brasil. A condição para volta era de que Lucas adquirisse a cidadania sueca. O pai alegava que Lucas só conseguiria a cidadania sueca se ele e Roberta se casassem. Roberta, que na época não sabia que na Suécia a cidadania da criança não está ligada ao estado civil de seus pais, cedeu à pressão e se casou, pensando no bem-estar do filho. Mas pelas leis suecas, o casamento jurídico obriga os pais a compartilhar a guarda de seus filhos dando a ambos os mesmos direitos sobre a criança.
Roberta só foi perceber a cilada que tinha caído quando foi impedida pelo pai da criança de retornar ao Brasil com o filho. Desta vez ele também a agrediu fisicamente, e confiscou o passaporte dela e do menino. Com medo de mais agressões Roberta só queria fugir dali com seu filho. Tentou negociar a volta ao Brasil e por fim conseguiu a autorização do pai, por escrito, para poder embarcar. Parecia tudo bem. No dia seguinte, Roberta buscou Lucas na creche, pegou o primeiro vôo que conseguiu, e deixou a Suécia com Lucas.
Enquanto Roberta voava com o filho de volta ao Brasil, o pai da criança a denunciou as autoridades suecas por sequestro de menor. Baseado no Tratado de Haia ele exigia trazer Lucas de volta a Suécia. No primeiro momento Roberta custou a acreditar no que estava acontecendo, mas logo percebeu que o caso era sério. E aí se deu início a uma disputa de guarda que se arrastou durante 7 anos.
Enquanto o processo corria contra Roberta, a Justiça brasileira a impediu de deixar o Brasil. Isto fez com que ela não pudesse vir à Suécia se defender da acusação de sequestro.
Foram várias vitórias e derrotadas nos tribunais brasileiros. A primeira vitória em 2009, mas em 2012 veio a derrota. Roberta recorreu da decisão em duas instâncias, mas perdeu a causa. Dias antes de recorrer em terceira instância, ela foi arrancada de sua casa e enviada à Suécia.
Quando foi presa em São Paulo, Roberta foi informada que o governo sueco garantiria que ela não seria presa quando chegasse ao País, e que responderia pelo processo de sequestro de Lucas em liberdade. Essa garantia foi dada por escrito pelo governo sueco. Ao desembarcar em Estocolmo, Roberta foi recebida por um representante do Ministério das Relações Exteriores sueco, que novamente afiançou que Roberta não seria presa. Assim, ela e Lucas embarcam no trem para Malmö. Quando saltaram do trem, Roberta foi surpreendida por policiais que na frente de Lucas lhe deram ordem de prisão e a levaram para a delegacia. Lucas foi imediatamente entregue ao pai. O menino que tem Síndrome de Asperger e só se comunica em português viu a mãe desaparecer, sem receber nenhuma explicação.
Roberta foi condenada há 2 anos de prisão por sequestro de menor. Na Suécia, uma pena de 2 anos é dada somente a crimes hediondos. Roberta foi levada para um presídio de segurança máxima, junto com presas perigosas. Ela também foi condenada a ressarcir economicamente tanto seu filho Lucas bem como o pai do menino.
Durante o período na prisão ela foi ameaçada de morte e sofreu retaliações de outras detentas. Quando foi condenada, Roberta perdeu automaticamente a guarda do Lucas e no começo não tinha nem o direito de encontrá-lo. Com o tempo o menino passou a visitá-la. Em 2016, veio a absolvição. Em julho de 2017, Roberta ganhou nos tribunais suecos a guarda compartilhada de Lucas. Em dezembro de 2017 o pai do menino decidiu não ter mais contato com a criança, e ofereceu à Roberta a guarda total do menino. Roberta aceitou.
Neste contexto, o BPM fez algumas perguntas para a Roberta:
BPM: Roberta de onde você encontrou forças para passar por tudo que passou?
Roberta: Ter um foco foi muito importante. E o foco era ter o Lucas de volta. Algumas pessoas foram essenciais nesta jornada, entre elas os funcionários da Embaixada Brasileira em Estocolmo e o Senador Eduardo Suplicy. Sem o apoio de Suplicy, eu talvez não tivesse aguentado lutar. Outro fator importante neste período foi o apoio e parecer do Serviço Social sueco, que em todos os relatórios pedia que Lucas fosse entregue a mim.
BPM: Que conselho você gostaria de deixar para as mães que têm filhos com pais estrangeiros?
Roberta: Fazer um contrato nupcial onde a guarda da criança é claramente estabelecida. Para mim é difícil ver quando um pai/mãe tem más intenções em relação à guarda de uma criança. É difícil ver os sinais, principalmente depois que as crianças nascem. Também aconselho as mães a se informarem sobre o Tratado de Haia e sobre a legislação local do país em questão.
Atualmente Roberta vive no sul da Suécia e tenta recomeçar sua vida junto com Lucas. Ela quer se reencontrar profissionalmente e acima de tudo ser feliz.
*O que diz o Tratado de Haia em relação a guarda de crianças?
Segundo o Tratado de Haia a guarda tem que ser decidida no local de residência habitual da criança. Isto dá margem para várias interpretações, já que a justiça pode determinar que se meu filho está passando férias na Europa com seu pai este é o endereço atual dele dando ao pai o direito de não querer devolve-lo. Mas o tratado tem exceções no que se refere a devolução da criança, como por exemplo, se a criança já se adaptou ao ambiente ou se uma nova transferência causaria danos psicológicos ou físicos ao menor. Na Suécia, se uma criança é trazida pra cá de forma ilegal e permanece aqui durante o período mínimo de 1 ano a Justiça vai optar para que a criança fique na Suécia. Já no Brasil, a ordem é que a criança seja devolvida não importa as exceções.
13 Comments
Muito emocionante a entrevista, principalmente para nos, brasileiras casadas com estrangeiros e gostaria de aproveitar para fazer uma pergunta: Segundo o relato, o pai autorizou a ida da mae e filho ao Brasil e logo em seguida denunciou o sequestro. Sempre aprendi nos bancos universitarios, sou advogada, que qdo um dos pais autoriza a viagem com o menor nao cabe sequestro. Lendo o texto fiquei insegura e gostaria, se possivel, de um esclarecimento. Obrigada!!!
Oi Monica, obrigada pelo comentário e carinho com o BPM. Sim, este artigo e muito importante para nós, brasileiras casadas com estrangeiros. Em relacao a denuncia, vou tentar explicar da forma que entendi. A autorização foi dada para o embarque..autorização so era valida em solo brasileiro e nao solo sueco.. o Brasil e a Suecia nao têm as mesmas leis no que se refere a guarda e custódia de menores o pai tambem usou o Tratado de Haia ao seu favor por isso configurou sequestro ja que a autorizacao nao era valida aqui.
Acho que ai é que entra a importância de estarmos informadas a respeitos das leis dos dois países, pelo que entendi , ele sabiamente deu a autorizacao que é valida no Brasil e utilizou o tratado de Haia a seu favor. Jogou com as duas leis:(
Obrigada pelo exelente texto Veronica!
Com certeza, Deni… e de extrema importância estar a par de todas as informacoes, já que é possivel jogar com as duas leis. Obrigada pelo feedback!
Excelente artigo! Fico encantado com a diversidade e preciosidade de informações que vocês, colunistas do BPM, trazem a nós, leitores! Parabéns, verônica e BPM em geral. Ah, preciso dizer também que adooro seus textos. Sempre os leio 🙂 E muita sorte pra Roberta nesse novo início, felizmente, feliz 😀
Muito obrigada pelo seu carinho. Que bom que segue o BPM. Nós colunistas estamos sempre nos esforçando para preservar a qualidade do bkog. Obrigada pela força. Vou enviar suas saudacoes a Roberta ????
Super importante Verônica, eu nao sou mãe mas lido com imigrantes na Finlândia e como não tenho tanto conhecimento legal, essas informacões nos dão base pra pesquisar situacões e possíveis riscos que as vezes nem acreditamos que possam existir mas infelizmente são fatos. Parabéns!
Obrigada! E parabens pelo seu engajamento na Finlandia.. mesmo sem ter filhos e bom estar a par das informações. Um abraco Veronica
Olá Veronica! Interessante ler sobre à mulher que tem opcao de nao querer ser maes. Vivo aqu no Sul dá Suécia à 43 anos. Estudei para “Socionom “em Lundsuniversitet” Me formei em ” Socionom ” E trabalhei em Helsingborg 30 anos. Interessante ler o seu texto e me fez parar para pensar com à razao e o coracao. Durente os meus anos tanto como profissional, como particular, minhas esperiencias e contatos com mulheres suécas é que contudo que à mulher tem muitos direitos e auxilio, ainda à vida dá mae é muito, super dura. Nao só socioeconikica más em tudo. Muitas maes sao só com os filhos e nem sempre por opcao própria. O fato de nao querer ser mae, é claro sao veridicos e muitas mulheres se sentem excluida de vários grupos, pois que tem filhos, costumam terem horas de ocupacoes em comum com as amiga(os) e os filhos, natacao, judo, futebol, dans, patins, equitacao. e uma série de ocupacoes que usam em grupos para se encontrarem. Formam assim um circulo de amigos mais ou menos fechado! Más ser mae. aqui principalmente longe dá própria familia è um desafio, principalmente mae sozinha! Obrigada pelo texto!
Oi Dalva, obrigada pelo seu comentário. Sim, ter filhos é uma responsabilidade muito grande, que exige um esforco imenso. ser mae em um pais distante, sem apoio da familia é, por exemplo, uma tarefa mais que árdua. Existem prós e contras em todas as situacoes, mas eu penso que minha filha vai me agradecer por eu ter escolhido a maternidade e nao ter sido obrigada a ela. Um abraco, pra vc.
Veronica! li sobre o ocorrido com à Roberta e com o filho dela, o Lucas. Uma coisa que me deixou um tanto confusa é que o pai do Lucas é dinamarques, ele sómente morava aqui no Sul dá Suécia! Como é que ele pode exigir que o Lucas ganhasse à cidadania Suéca? E também que se casou com à Roberta e alegou que teriam que se casar para que o Lucas obtivesse cidadania suéca e nao dinamarquesa? Fico agradecida se for possivel um esclarecimento sobre o assunto, Desejo toda à felicidades e sucesso para à Roberta e para o Lucas e que eles consigam viver em paz, se ná Suécia ou no Brasil o mais importante é eles estarem com saude e felizes!
Oi Dalva, o pai do Lucca é dinamarques, mas com cidadania sueca. ele mora na Suécia a muitos anos pois sempre trabalhou para o governo sueco. por viver aqui e ter cidadania aqui ele quis que o menino tambem tivesse – até para facilitar a estadia da crianca aqui. pelo que eu entendi como ele vivia aqui ele queria que a crianca viesse pra ca ficar com ele, por isso a cidadania sueca e nao dinamarquesa.. se ele vivesse na dinamarca provavelmente teria pedido a cidadania dinamarquesa.
Essa história parece ser realmente triste e injusta olhando pelo lado da mãe. Porém, sempre que possível, eu procuro saber dos dois lados da moeda para não tirar qualquer conclusão precipitada. Lendo esse texto, surgiram várias duvidas e pensamentos:
Por que a mãe não quis compartilhar a custódia com o pai?
Por que a mãe não quis que seu filho tivesse nacionalidade sueca (ou dinamarquesa) sendo que isso poderia proporcioná-lo mais oportunidades no futuro de talvez estudar na Europa, morar ou trabalhar?
Se o pai não fazia questão antes de ter a custódia, não significa que ele não possa mudar de ideia partindo do princípio que ele queira um melhor futuro para seu filho. Não esqueçamos que ele é o PAI!
Não sei o “background” da mãe em termos financeiros e até de caráter, talvez o pai tenha tomado essa atitude (de ter a guarda) pensando no melhor para seu filho.
Está na nossa cultura latina de que os filhos devem sempre ficar com a mãe incondicionalmente e que o pai não tem direito nenhum sobre os filhos, ou só serve pra pagar pensão. Não estou dizendo que seja o caso dessa moça, mas também não acredito totalmente em histórias onde só um lado é exposto. Desculpe, mas achei esse texto muito vago e tendencioso.
De qualquer forma, espero que esse menino tenha o melhor futuro possível e que não seja prejudicado por qualquer decisão tomada. Às vezes pais separados brigam na justiça pensando neles próprios, com o intuito de atacar um ao outro, mas não pensam que o mais importante é o bem estar e futuro da criança.