Uma breve introdução à língua dinamarquesa.
Há algum tempo acompanho as publicações no site e, depois de uma dose de coragem e uma taça de vinho, decidi humildemente tentar contribuir com o projeto, que proporciona diferentes perspectivas tanto para quem fica como para quem vai.
Sair de seu país não é fácil, simples ou indolor: é uma espécie de exílio no qual não se está nem completamente em harmonia com o novo cenário, nem totalmente desligado e desapegado das antigas paisagens , no qual cercamo-nos de novas relações que ainda não nos completam e, ao mesmo tempo, deixamos incompletas as relações do passado, e no qual nos esforçamos para imitar e assimilar comportamentos na tentativa de finalmente pertencer a algum lugar e a alguma sociedade.
Não importa a razão da mudança – um novo emprego, um novo amor, novos conhecimentos-, ela sempre significa se deparar com diferenças que nos surpreendem, desafiam e, ao final, enriquecem, em um caminho cheio de percalços, mas também pleno de possibilidades. O primeiro passo nessa jornada é tentar compreender os valores e a mentalidade da nova cultura, e como eles se refletem no dia-a-dia. Assim, tentarei conduzi-los, de maneira leve, breve e humorada, por certos aspectos interessantes da cultura da Dinamarca, país no qual moro, trabalho e que continuamente tento desvendar.
O encantamento – ou maldição – da língua dinamarquesa
A língua falada em determinado país é uma expressão de seu povo, de suas características e valores. O italiano tem vogais e consoantes abertas e claras como os habitantes de uma nação conhecida por sua expressividade; o francês é elegante e sensual, soando suave como o balançar das saias de seda das esguias francesas; o espanhol carrega força e vibração e a virilidade dos toureiros em sua pronúncia; e o dinamarquês…..bem….o dinamarquês é pronunciado com a graça e leveza que só encontram paralelo no dialeto falado pelos orcs na trilogia “o Senhor dos Anéis”, combinado com a clareza e a limpidez de um bêbado norueguês tentando se expressar em alemão. De fato, uma característica fonética marcante do dinamarquês é a presença de um recurso prosódico chamado “stød” ou impulso, descrito como “laringalização, voz crepitante ou parada da glote” que, na prática, faz com que os desavisados pensem que os dinamarqueses estejam sempre engasgando com a própria saliva.
A poeticidade do dinamarquês evidencia-se quando percebemos que a mesma palavra utilizada para chamar o seu amor ou alguém querido é também o exato termo empregado para denominar “imposto” (skat, em dinamarquês), uma confusão que, na minha concepção, explica as baixíssimas taxas de natalidade e as altíssimas percentagens que o fisco come do meu salário.
Como não se enamorar de uma língua na qual as expressões “casado(a)” e “veneno” são a mesma palavra (gift)? Eu sempre demoro uns 3 segundos para concluir se devo parabenizar ou oferecer meus pêsames quando alguém me comunica “jeg vil blive gift”.
As crianças dinamarquesas costumam iniciar a falar mais tarde do que as demais…..e pudera: palavras como “mãe” e “assassinato” soam exatamente iguais aos ouvidos estrangeiros (mor e mord), e é impossível escutar a diferença entre “amarelo”, “ouro”, “chão” e “Deus” (gul, guld, gulv e gud, respectivamente).
De fato, o segredo para uma pronúncia impecável em dinamarquês está em solicitar ao seu dentista de confiança a aplicação de uma injeção anestésica na língua. No momento em que você não conseguir comer mingau de farinha láctea sem se babar, você estará pronto para falar dinamarquês e pronunciar seu mais hediondo fonema: o “soft d”, uma mistura de d, l e aquele som que as crianças fazem quando não querem mais papinha e cospem/babam tudo nas suas roupas.
Finalmente, a língua dinamarquesa nos presenteia com indispensáveis expressões de politesse ou educação: ao terminar uma refeição, é falta de educação não agradecer pela comida (tak for mad) ou, após ir ao cinema com seus amigos, não retomar o diálogo agradecendo pelo ultimo encontro (tak for sidst). Contudo, a expressão “por favor” não existe em dinamarquês, o que, na minha modesta opinião, diz muito sobre as habilidades sociais de seu povo, e também deve explicar a taxa de divórcio em torno de 50%.
Brincadeiras à parte, o dinamarquês é uma língua difícil e inacessível, e seu povo também é considerado fechado e pouco sociável. Entretanto, o esforço certamente compensa, pois a língua dinamarquesa oferece desde as belíssimas fábulas de Hans Christian Andersen (como a Pequena Sereia, o Patinho Feio, etc) até os sagazes “grooks” de Piet Hein, pequenos poemas sobre o cotidiano, curtos em extensão mas profundos em reflexão. Despeço-me , então, com um de meus “grooks” favoritos:
MEETING THE EYE
You’ll probably find
that it suits your book
to be a bit cleverer
than you look.
Observe that the easiest
method by far
is to look a bit stupider
than you are
(Piet Hein)
9 Comments
Camila, muito interessante a sua percepção sobre o idioma. Uma vez vi um meme que até usei num dos textos (sobre as 5 razões para não morar aqui – uma das razões é justamente o idioma) que dizia que não sabia se a pessoa estava falando dinamarquês ou se estava engasgando, pois a impressão é de que as letras são engolidas com um gole de snaps: é o famoso stød, mencionado por você. Gosto muito da musicalidade dos idiomas e pra mim o stød é como o staccato na música, o ‘udtryk’ (expressão) daqui; eu acho simplesmente fascinante que o dinamarquês tenha essa pronúncia tão peculiar que hoje, depois da sofrência dos primeiros anos, aprendi a apreciar. Devo ser louca por achar bonitos idiomas como o alemão e o dinamarquês! E não é justamente essa salada de fonemas, essa sopa de letrinhas que atrai?
Parabéns pelo texto e bem-vinda 🙂
Muito bem escrito, uma delícia de ler e exatamente como me sinto 🙂
Obrigada, querida!
Excelente post! Sei agora que jamais conseguirei ‘dominar o dinamarquês’, ambição a qual nunca de fato cultivei. Por isso carrego como única medalha a satisfação de falar o nome de minha cidadezinha, Beder, e ser compreendida pelo taxista. Admito, porém, que foram necessárias algumas performances diante do espelho e a determinação de não me importar em mostrar a língua em público. Sorte e saudações!
hahahahahahahahahha! Essa do taxista foi ótima! Já passei por isso incontáveis vezes!
Esse texto deveria ser um vídeo. Ri em diversos trechos. Obrigado!
Obrigada, Harlley! O problema do vídeo é que eu certamente precisaria estar bêbada para pronunciar certos fonemas 😀
Sou intercambista aqui na Dinamarca e a língua (e fazer amigos) é um desafio interminável. Esse “soft d” atrapalha muito, e o fato de soar estranho para nós, nos traz mais dificuldade ainda, principalmente quando te pedem pra falar “rødgrød med fløde”.
Adorei seu texto!!
Oi Ana, tudo bem?
Sim, nós enfrentamos desafios parecidos aqui, além do prazer perverso que os dinamarqueses têm em nos humilhar com esse trava-língua 🙂 Aos poucos, as coisas ficam mais fáceis. Hoje um colega de trabalho quis me elogiar e disse que eu não falo mais dinamarquês com o mesmo sotaque da princesa Mary 😀 Beijos