Estou morando na Espanha desde dezembro de 2016, mas sempre que me perguntam onde moro, eu respondo com “na Catalunha”. Poucas vezes respondi em diálogo que morava na Espanha, só mesmo para preencher formulários ou em compras on line. Isso se dá, principalmente, porque aqui as pessoas agem como se de fato a Catalunha fosse um lugar a parte. A língua é outra, aqui se fala o catalão e não o castelhano, língua oficial da Espanha. Claro, o castelhano é ensinado também nas escolas, mas uma das brigas que a generalitat da Catalunha enfrentou foi justamente pelo direito das escolas ensinarem em catalão e o castelhano ser apenas uma das aulas de idiomas.
A bandeira é outra, e assim como nos EUA, é possível ver as bandeiras na maioria das janelas, na frente das casas, em adesivos, roupas e outros. A bandeira catalã oficial é representada por 4 linhas vermelhas sobre um fundo amarelo. A lenda diz que essa estrutura veio dos 4 dedos ensaguentados de um rei sobre seu escudo de ouro em uma das várias guerras de conquista. Contudo, essa lenda é válida para várias regiões espanholas, inclusive aragão, de onde a lenda provém, e que anexou a Catalunha por casamento, e não guerra. Mas a bandeira que eu vejo em quase todas as janelas aqui não é essa, e a famosa Estelada, a versão inspirada na bandeira cubana, que inclui um triangulo azul com uma estrela branca sobre os riscos vermelhos no fundo amarelo. A Estelada é proibida, oficialmente, e caso seja hasteada em prédio público isso é crime, podendo gerar multas ou até mesmo a prisão (por algumas horas ou dias) do político responsável. Entretanto vejo a Estelada aqui por todo lado, desde em monumentos turísticos lotados, até o topo de montanhas, onde não há ninguém.
Além do idioma e da bandeira, vemos os catalães se referirem a eles mesmos e a região sempre assim, como a Catalunha, os catalães. Inclusive é comum ver eles mencionarem a Espanha e os espanhóis como se falando de terceiros, como se não fizessem parte. E ao viver numa cidade nos Pirineus isso fica ainda mais evidente, pois os Pirineus são mais catalanistas, como eles dizem. É comum também ouvir aqui as pessoas comentarem que Barcelona já não é tão catalã assim, misturou muito, aceita melhor passar para o castelhano para receber os turistas e por aí vai.
Mas é importante destacar que essa não é uma opinião homogênea. Muitos catalães não se veem tão distantes assim do resto da Espanha. Muitos dos que conheci na minha cidade possuem família de outras partes, famílias da Andaluzia, Extremadura, Múrcia, e por aí vai. Vários aprenderam o castelhano como língua materna e o catalão nas escolas. E geralmente, mesmo para os mais catalanistas, eles não veem o resto da Espanha como inimigos, eles entendem que a Espanha é composta de muitas culturas, muitas línguas. Há o Basco (e o “país” Basco), que também já passou por movimentos independentistas fortes, e hoje conseguiu uma maior autonomia em relação ao governo central de Madri. Há também diversas outras línguas e culturas, que não exploraram o viés separatista, mas que são orgulhosos de suas culturas, como Valência e o valencià, Val d’Aran e o aranês, a Galícia e o galego, entre outras.
Hoje dia 1º de Outubro vai acontecer (ou não) o referendo popular sobre a independência da Catalunha. Esse referendo foi articulado pelo governo da generalitat, e é ilegal, pois juridicamente falando a constituição espanhola não permite referendos populares de caráter independentista sem aval do governo central. O que muitos catalães, e outros espanhóis têm argumentado é que proibir um referendo popular é antidemocrático. Muitos creem que o povo tem o direito de decidir seu direito de autodeterminação, e conheço algumas pessoas que falaram que vão votar não (à independência), pois acreditam que a Catalunha está melhor como parte da Espanha, só gostariam de uma autonomia maior, como a região basca conseguiu, mas que querem poder votar, querem poder exercer esse valor democrático, ainda que seja para dizer não à consulta.
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Nas últimas semanas de setembro o clima de tensão tem aumentado. Alguns políticos catalães foram detidos por idealizar e planejar a realização do referendo. Cédulas impressas foram confiscadas, a Guarda Civil (como é chamada a força policial central, talvez um equivalente da Polícia Federal) foi movida para Barcelona e outras cidades catalãs. Vivo numa cidade de 12.500 habitantes e alocaram 100 Guardas Civis para cá. Isso porque a polícia da Catalunha são os Mossos d’Esquadra, que obedecem à Guarda Civil e ao governo central, mas como são polícia local, a maioria é composta de catalães, nascidos e criados, e acredita-se que muitos possam ser catalanistas e não queiram obedecer às ordem de impedir o referendo de acontecer. Até agora os Mossos não foram contra as ordens de Madri, mas há receio, e a população vê como ameaçadora a presença da Guarda Civil.
O governo de Madri insiste que não haverá referendo algum. O da Catalunha reafirma que sim haverá. Enquanto isso eu aguardo o domingo quietinha em casa, com esperanças de que não haja tensões maiores. Se haverá referendo ou não eu não sei, e mesmo que haja, se a Catalunha se tornará independente ou não já é outra história. Existem várias questões que precisam ser analisadas, além da cultura local, como inclusão na União Européia, formação (ou não) de exército nacional, impostos e taxas, circulação de pessoas, principalmente de imigrantes que possuam cidadania ou visto europeu, entre mil outras burocracias em caso de independência. Assim como processo do Brexit não é fácil e é muito complexo, o de uma possível independência da Catalunha também é.
Eu não conheço o local a fundo o suficiente e nem tenho os laços culturais de uma vida inteira para poder dar minha opinião pessoal sobre esse tema, mas entendo o suficiente de democracia para compreender o porque dos catalães se sentirem silenciados ao terem o referendo proibido, ainda que constitucionalmente ilegal. Seja qual for o resultado, espero que seja pacífico, e que os direitos humanos dos que aqui vivem só aumentem, e nunca diminuam, desejo aliás, que espalho para o resto do mundo.
Tenho acompanhado as notícias sobre o referendo pelo El País, BBC e outras mídias e recomendo a leitura do artigo em inglês da BBC sobre o tema, além do acompanhamento pelo El País com vídeos e textos em catalão e castelhano.
E vocês, já vivem ou já viveram em algum país que passou por processos independentistas?
12 Comments
Excelente texto!
Moro na Inglaterra que passa pelo seu divorcio da Uniao Europeia.
O mundo separatista nao me atrai, mas como bem falou, o importante e dar o sim e o nao e ao povo. Dar ao cidadao o Direito de decidir, afinal o Poder emana do Povo e a ele sera excercido.
Vou compartilhar!
Obrigada por nos prestigiar com sua leitura e compartilhamento, Monica! Estamos sempre à favor do diálogo! Um abraço!
Eu tb vivo aqui, e ainda estou pensando se democracia é o voto da minoria:
Dos 7 milhones de catalanes, votaram 2,3 milhones… tenho duvidas…
No Brasil já vimos muitas coisas que realmente, nao queria que se pasara aqui na Espanha, em Catalunha.
O povo tem muito amor a sua terra mas muita aversao a tudo que seja dos outros, dos Espanholes.
Já morei em Galicia, com bandeira do Brasil e Espanha na janela, aqui tenho receio.
As vezes até receio de que meu filho de 4 anos coloque sua camiseta do Real Madrid, porque sempre tem um que te olha mal.
Adoro viver aqui, temos bons e super amigos catalanes, independentistas e näo, mas depois de esses dias, dividiram o pais, com muito odio disfarçado.
Oi, Gaby! Sinto muito que você tenha vivenciado hostilidades. Eu sempre fui bem tratada, embora tenha presenciado momentos em que o nacionalismo me pareceu rude e desnecessário. Acredito que o mais importante é que a violência cesse e que as pessoas possam viver com mais respeito, mais acesso aos Direitos Humanos, qualidade de vida melhor, e, principalmente, sem violência, seja isso com ou sem independência. Estou aqui torcendo para que as coisas se acalmem, e que os radicalismos diminuam, aqui e no mundo todo, sejam de qual parte for. Um abraço!
Olá Juliana! É bem difícil compreender os motivos que levaram a Catalunha fazer esse referendo. Mas quando visitei Barcelona, percebi que era muito raro achar uma bandeira da Espanha na região (via muito mais bandeiras da Catalunha). É realmente estranho esse sentimento de não pertencer ao país em que vivem, já que não dá pra ver de uma formai mais clara os problemas ou motivos mais gritantes para eles reivindicarem uma independência.
Só que as vezes eu sinto que os catalães só se sentem espanhóis por mera excepcionalidade, só quando o país está bem. Quando o país está mal das pernas, eles literalmente saem do barco. Já vi em eventos esportivos realizados em Barcelona, os catalães torcendo pelo time ou atletas espanhóis, e comemorarem quando havia uma grande conquista (como foi na Copa de 2010). Parece que eles são meio bipolares, não sei. Confesso que isso é bem confuso.
Mas gostaria que você falasse como é a relação dos catalães com a identidade espanhola: há eventos cívicos DA ESPANHA na Catalunha em escolas ou nas cidades? Ou há um boicote contra os símbolos espanhóis (como hino nacional, desfiles cívicos, etc)? Queria entender de onde vem tanta antipatia dos catalães em relação a Espanha. E você que mora aí pode explicar isso melhor. Obrigado pelo post!
Oi, Elias! Vou tentar te responder da melhor forma que eu consigo, embora ache que para realmente compreender esse sentimento independentista eu teria que ser catalã. Primeiro vou falar dos eventos cívicos, como você disse: eu não sei como é a comemoração em escolas, pois não tenho filhos, mas vivenciei aqui recentemente a Copa Europa de Remo (piraguismo, como é chamado o esporte aqui) e a fase final foi na cidade onde vivo. A ganhadora do feminino foi uma esportista catalã, de outra cidade, que competiu em nome da Espanha, com bandeira espanhola e todos torceram muito animados por ela. Sei também que torcem para a seleção de futebol espanhola em campeonatos internacionais e Copa do Mundo. Acho que os mais catalanistas torcem mais pelos atletas catalães, e como cresceram aqui eles sabem quais atletas são catalães e quais são de outras partes da Espanha. Não presenciei aqui nenhum ato cívico que fosse da Espanha e não da Catalunha. Quando há feriados comuns às duas culturas, são celebrados, quando são apenas catalães são celebrados, e quando não são comuns à cultura catalã, o feriado existe, ele é mencionado, alguns grupos vão às ruas comemorar, mas é sempre bem menor e menos entusiástico. Já conheci catalães que são muito mais receptivos com os demais espanhóis, e outros que não são receptivos, já tendo presenciado alguns sendo rudes, embora nunca agressivos.
Agora voltando na sua primeira indagação, o porquê do sentimento nacionalista. Bom, isso é histórico. Para entender melhor é interessante ler sobre a história da formação da Espanha, que foi por muito tempo dividida em vários territórios, sendo que alguns deles mantém os mesmos nomes, como Andaluzia, Murcia, Galícia, Catalunha, etc. Os reinos de Aragão e Castela se juntaram e ficaram fortes, e foram conquistando outros, por guerras, alianças, casamentos e outros mecanismos. Inclusive aqui não se diz que na Espanha se fala Espanhol. Se diz Castellano (Castelhano) que é a língua de Castela. Durante a Guerra Civil Espanhola, e o regime de Franco, a Catalunha foi uma das regiões com número grande de opositores, e sofreu muita repressão, aumentando esse ressentimento em relação ao governo central de Madri. Acho que alguns desses fatos nos ajudam a entender melhor o porquê deles se sentirem um povo à parte, dentro da Espanha. Outro ponto importante de ser lembrado é que não são os únicos separatistas/independentistas. Os bascos, do País Basco, por muito tempo pleitearam independência, inclusive grupos fazendo ataques violentos, como o ETA. Atualmente os bascos estão em acordo em sua maioria com o estatuto de autonomia que conseguiram depois desse período turbulento, mas ao passear pela região vi muitos cartazes pedindo uma Espanha republicana, federativa e com mais autonomia às regiões. Outro dado importante é que a Catalunha é uma região industrializada e que contribui muito para o orçamento da Espanha, e caso se separassem, teriam mais dinheiro e liberdade na decisão do uso. Esse para mim é um dos argumentos mais complicados dos independentistas, pois já ouvi catalães criticando que estavam indiretamente pagando para computadores em escolas novas da Andaluzia, uma das regiões mais pobre. Por outro lado já ouvi eles reclamarem de estarem indiretamente pagando o orçamento militar da Espanha, em ações de guerra das quais discordam, então entendo que é um argumento complicado e que cada pessoa vai usa-lo conforme sua opinião e ideologia. O mais grave, na minha opinião, é a fragmentação e a polarização que o referendo está gerando, tornando o governo central mais violento e a população catalã mais independentista, o que pode ser muito complicado para resolver, não só para a Espanha, mas para a União Européia. De todo modo, o que espero é que as coisas se resolvam, os ânimos se acalmem, a violência cesse, e a vida fique melhor para todos, na Catalunha, na Espanha, no Brasil, no mundo!
Ótimo post! Muito bem escrito!!!
Gosto de ver posts com esse viés político “esclarecedor” por aqui.
Beijinhos
Obrigada, Blanca! É sempre bom ter o feedback! 🙂
Texto muito esclarecedor.Parabens pelo conteúdo !
Muito obrigada! Abraço!
Ótimo texto. Passei quase 5 anos da minha infância em Córdoba, na Andaluzia. Na escola sempre nos ensinaram que a independência da Catalunha era algo errado. Eram os anos 90 e o ETA fazia vários atentados pedindo a independência basca, o que levava a população em geral a ser contra qualquer separatismo. Depois voltei para o Brasil e essa questão ficou distante da minha vida. Agora,com o referendo, vi uma amiga dos meus pais, que é de Córdoba mas está em Barcelona há mais de 20 anos, defendendo a independência, colocando links para sites sérios e tal. Ela é uma artista cuja opinião sempre levei em conta e então percebi que tudo o que eu sabia a respeito vinha da minha infância e da escola espanhola. Comecei a pesquisar e, se bem não tenho uma opinião formada para defender ou não a independência, entendi muito mais os motivos e toda a história (que vem de longe…) que levam os catalães a pedir a separação. Enfim, sabemos que para o governo central espanhol a independência não é um bom negócio. Sabemos que tem todas as questões relativas à UE. Vou acompanhar torcendo para que não aconteçam ações tão truculentas da parte da policia espanhola.
PS: Uma pergunta. Como você vê a xenofobia na Catalunha? Já vi vários casos ruins com amigos que foram morar aí, eu só fui a passeio e nunca tive problemas, mas gostaria de saber a visão de alguém que está aí agora, no olho desse furacão político.
Oi, Lívia! Obrigada pela leitura e comentário! Eu pessoalmente não passei por processos de xenofobia da parte dos catalães, embora não possa dizer o mesmo da polícia central, responsável pelos documentos de imigração, eles são bem truculentos e rudes, e visivelmente não gostam de lidar com imigrantes, embora trabalhem justamente com a emissão de documentos desses casos. Embora eu não tenha passado por xenofobia aqui, já vi acontecer. Aqui muita gente me confunde com francesa ou inglesa, e, infelizmente, sei que a pele mais clara, faz com que me passe por “européia do sul” e só quando falo é que as pessoas percebem que não sou daqui, o que muitas vezes não acontece com outras brasileiras e latinas. Percebi de maneira geral, nos catalães uma boa receptividade com brasileiros em geral. Quando falo em castellano, por ainda estar aprendendo o catalão, eles a princípio não reagem tão receptivamente, mas após saberem que sou brasileira, ficam bem mais receptivos do que se eu fosse de outras partes da Espanha, em especial Madri, por exemplo. Aqui eles recebem muito bem os bascos, é comum ver um intercâmbio cultural entre as regiões. Não sei se consegui te passar uma boa impressão, mas foi o que vivi aqui até agora.
Abraço!